O ícone: a ética de um olhar não detido
A prática que nos é proposta por Dionísio o Aeropagita e os Padres da Igreja para entrar no “Obscuro e Luminoso Silêncio” , coração do Real além do Ser e de Deus, é uma prática da “não compreensão”, “um olhar não detido”. Trata-se realmente de ver o que vemos, mas o olhar não detido por aquilo que se vê faz daquilo que é visto não um ídolo, mas um ícone. Essa recusa a apropriar-se, capturar ou compreender o que quer que seja de sensível, pensável ou imaginável, é o próprio motor da apófase (*).
Assim uma inteligência não detida por aquilo que ela sabe, não fará do seu saber ou da sua ciência um ídolo, mas um ícone. Um amor não detido por aquilo que ele ama, não fará do afeto e do ser que ele ama um ídolo, mas um ícone. Uma fé não detida por aquilo em que ela crê não fará do seu credo, da sua imagem ou da sua representação de Deus um ídolo, mas um ícone. Uma teologia não detida pelas suas afirmações ou interrogações sobre Deus não fará da sua perplexidade ou da sua certeza um ídolo, mas um ícone. O ícone nos convida a passarmos de uma sensibilidade, de uma consciência, de um amor, de uma fé idólatras a uma sensibilidade, uma consciência, um amor, uma fé não idólatras, ou seja, não detidos, não preocupados em compreender o Real, em fazer dele um Deus, um conceito, uma imagem ou uma coisa e, assim, reduzir o Real ao ente, ao estado de objeto.
“O olhar não detido não vê mais nada de particular: ele vê. O conhecimento não detido não conhece mais nada de particular: ele contempla. Assim é celebrado o supraessencial quando a inteligência não produz mais objeto ou ideia”. Celebrar o supraessencial, a adoração, é proclamar a abertura total da consciência e do amor àquilo que não é mais objetivável: não há mais nada a ver além da luz na qual tudo é visto. O olhar não se detém nem sobre imagens, nem sobre tempestades, nem sobre os planetas, nem sobre as estrelas, nem sobre nada de particular – ele observa o céu. Ele está no espaço-templo de onde se eleva o puro incenso do insondável silêncio.
Conservar o olhar não fixado ao que ele está observando: discernir o invisível no visível…
Conservar a inteligência não fixada ao que ela sabe: discernir o incognoscível no conhecido…
Conservar o coração não fixado ao que ele ama: discernir o Outro naquilo que teríamos tendência a desejar como nós mesmos…
Conservar o desejo não fixado pelo objeto de nossas necessidades ou demandas: discernir o inimaginável ou o inominado do que ele procura.
(*) A teologia apofática é uma abordagem fundada sobre a negação. Ela deriva da teologia negativa, abordagem que insiste mais sobre o que Deus não é do que sobre o que Deus é (Deus é incompreensível, incognoscível, inalcançável, etc.). Negação de todo discurso sobre Deus, considerado como nulo, pois o sujeito deste discurso é intraduzível em palavras ou em pensamento.
fonte do texto:
LELOUP, Jean-Yves. O paradoxo cristão: ser humano, ser divino. Petrópolis: Vozes, 2023. p. 98-99
LELOUP, Jean-Yves. Carência e Plenitude: elementos para uma memória essencial. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 129fonte da imagem:
Pantocrator. [recorte]. s/d. Disponível em <https://pravikons.ru/vse-ikony/ikona-spas-vsedezhitel-iz-deisusnogo-china>