Estava aqui lendo uma entrevista do grande fotógrafo Sebastião Salgado em que faz o elogio de um prazer inusual: o prazer de esperar. E não é que ele tenha quaisquer ilusões sobre a distância a que estamos desse prazer culturalmente interdito: “Vivemos hoje num acelerador de partículas, num clima de permanente expectativa”, temos uma dificuldade, que nos chega a parecer insuperável, de mergulhar na lentidão e na gratuidade dos processos humanos autênticos, por mais excepcionais e cotidianos que sejam. Mas garante Salgado: “Para fazer uma fotografia, é mesmo necessário experimentar o prazer de esperar”. Lembro-me a esse propósito, de uma história de Federico Fellini que ouvi contar a Tonino Guerra: um dos hábitos do cineasta era chegar a qualquer encontro um bom bocado antes da hora aprazada, fosse a uma reunião de trabalho ou a um jantar de amigos. Chegava ao lugar e punha-se a fazer hora, caminhando prazenteiro e sem dar sinais de coisa alguma ao longo da rua, para lá e para cá.
Quando os amigos o surpreendiam nisso e lhe perguntavam porque não tinha tocado à porta imediatamente, a resposta era semelhante à do fotógrafo: “O prazer de esperar”. A nossa cultura, que mistifica (ingenuamente) a eficácia e o utilitarismo, há muito cancelou o valor da espera. Os prazos sôfregos que incorporamos consideram-na um atraso de vida, um excrescência irritante, bota de elástico e obsoleta. Esperar por quê? Do pronto a vestir ao pronto a comer, da comunicação em tempo real ao experimentalismo instantâneo dos afetos: a espera tornou-se um peso morto com o qual não sabemos lidar e que é preciso descarregar borda afora. Talvez esse desejo de instantaneidade seja em nós um dissimulado reflexo defensivo, o medo crescente de que num mundo acelerado não exista afinal ninguém nem coisa alguma que nos espere. Quando todos vivem altamente pressionados, tudo se torna arriscadamente precário – é o que vamos constatando. Mas por dentro, e com medo, e sem falar disso.
Damos por nós hipermodernos, polivalentes, aparelhados de tecnologia como uma central ambulante, multifuncionais mas sempre mais dependentes, perfeccionistas mas sempre insatisfeitos, vivendo as coisas sem poder refleti-las, próximos da atividade extenuante e, no fundo, distantes da criação. Precisaríamos talvez dizer a nós próprios e uns aos outros que esperar não é necessariamente uma perda de tempo. Muitas vezes é o contrário. É reconhecer o seu tempo, o tempo necessário para ser; é tomar o tempo para si, como lugar de maturação, como oportunidade reencontrada; é perceber o tempo não apenas como enquadramento do sentido, mas como formulação em si mesma significativa. Quem não aceitar, por exemplo, a impossibilidade de satisfação imediata de um desejo, dificilmente saberá o que é um desejo (ou, pelo menos, o que é um grande desejo). Quem não esperar pacientemente pelas sementes que lançar, jamais provará a alegria de vê-las florir.
No que aos tempos respeita, a vida é completamente artesanal. Não é possível reproduzi-la em série, nem encontrá-la feita no outro lado. A vida requer a paciência do oleiro, que, para fazer um vaso que o satisfaça, produz duzentos só para treinar o gesto, a habilidade, testando a sua ideia. Por isso gosto muito da forma bem-humorada como Edgar Morin explica todas essas coisas. Diz ele: “Como toda a gente, tenho um horror total às esperas nos correios ou nos consultórios e não suporto as filas burocráticas a que nos obrigam. Contudo, não cesso de esperar o inesperado”.
fonte do texto:
MENDONÇA, José Tolentino. Libertar o tempo: para uma arte espiritual do presente. São Paulo: Paulinas. 2017. p. 33-36fonte das imagems:
CECCONI, Carlos Francisco. Altar de advento 2021