A família dos terapeutas, cujo esforço constante é aprender a ver claro, deve apegar-se à contemplação do Ser, elevar-se acima do sol sensível e nunca abandonar esta regra de vida que conduz à perfeita felicidade. (Fílon de Alexandria, in Os Terapeutas)
Os Terapeutas, como o resto dos humanos, procuram a felicidade, sabem que nenhuma felicidade duradoura pode ter por fundamento a ilusão. A verdade é a própria condição da verdadeira alegria e, por isso , é necessário antes de tudo “procurar ver com clareza”. Isso supõe “sair das projeções”, que não nos deixam ver o que é. Um elemento importante da terapia dos Antigos é a épochè, “o pôr entre parêntesis”. Olhar para uma coisa, uma pessoa, um acontecimento e “pôr entre parêntesis”, isto é, “suspender” o juízo, não projetar sobre “isto” os temores e desejos, todos esses “pacotes de memórias” de que se acha carregado o menor dos nossos olhares.
Ver com clareza, num primeiro sentido, é ver o que é; o que é, e nada mais. A epochè refere-se não só à emoção, mas também ao juízo e ao pensamento. Supõe grande liberdade diante das nossas reações, mas essas atitudes “reativas” que tomamos muitas vezes por “ações”, falando precisamente, não somos senhores delas. Antes de imaginar somente que isto seja possível, trata-se em primeiro lugar de tomar consciência. A epochè constitui um momento importante para deixar de lado “o próprio ponto de vista” e os seus condicionamentos, ver as coisas a partir delas mesmas, em sua “outridade” irredutível a nossas percepções fragmentárias, é o começo da clara visão.
“Aprender a ver com clareza”, em um segundo sentido, é desenvolver em si uma “visão esclarecedora”, aquela que vem do olho do coração. Existem olhares que diminuem, coisificam o outro; há outros olhares que revivificam, iluminam… desses olhares, uma pessoa sai mais pura, orgulhosa e como que engrandecida. Nossa vida vale muitas vezes pelo olhar sob o qual a gente se põe. O olhar do Terapeuta é não apenas claro no sentido de “lúcido”, “objetivo”, enquanto isso é possível a uma pessoa, mas é também claro no sentido de esclarecedor. Diante desse olhar você se vê melhor, descobre-se mais diante de um tal olhar, não numa nudez de culpa ou de vergonha, mas em nossa nudez essencial de “ser amado pelo Ser”. Diante de um olhar assim, você não se sente menosprezado, julgado, medido, mas “aceito”, sendo esta aceitação a condição necessária para que se inicie um caminho de cura. Melhor, diante de um olhar como esse, você pode sentir-se “amado”, mas amado de maneira não possessiva ou interesseira, “amado, por si, gratuitamente”…, estranhamente amado, amada.
Este olhar amoroso, iluminador, o Terapeuta não pode adquiri-lo a não ser por uma contemplação (theoria) assídua da luz que está “acima do sol sensível”. Sem dúvida, deve-se ter sempre o coração exposto a essa luz do Ser, para contemplar todas as coisas com olhos claros. Uma pessoa se torna o que ama, torna-se o que olha. O Terapeuta pode vir a ser claridade para aqueles que têm a coragem de depositar diante dele os fragmentos noturnos da sua vida, ele é então a testemunha humilde e solar da Estrela que os trouxe até aqui. Por muito tempo ainda depois de tê-lo deixado, o tempo se torna menos pesado. A pessoa fica então como que “ensolarada”.
fonte do texto:
LELOUP, Jean-Yves. Cuidar do ser: Fílon e os terapeutas de Alexandria. Petrópolis: Vozes, 2009. 12.ed. p.146-149.
Disponível em <https://www.livrariavozes.com.br/cuidardoser8532617263/p>fonte da imagem:
SCHEDEL, Hartmann . Reprodução de parte de digitalização de um documento histórico: Schedelsche Weltchronik ou Crônica de Nuremberg, datado de 1493.
Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nuremberg_chronicles_f_097r_3.png>