EN PNEUMATI KAI ALETHEIA. A SAMARITANA.

img de jesus e samaritana. autor desconhecido

Quando os discípulos pedem a Jesus: “Mestre, ensina-nos a rezar”, Jesus lhes transmite a essência da oração judaica, o Pai-nosso. Tendo sido cada um dos versículos desta oração tomado emprestado da tradição, ela sintetiza bem os pedidos e esperas do povo de Israel e de todos os sábios e profetas que precederam a Jesus. É uma oração de “homens”, que pode ser recitada tanto na sinagoga, quanto nas assembleias, uma oração que se reza em alta voz e em público.

Ela pode, entretanto, ser rezada “no segredo”, estando fechadas as portas do quarto, “porque o Pai que está no segredo sabe de que vós precisais”. Na tradição Zen, esta oração poderia corresponder à leitura ou à salmodia dos sutras antes de entrar na meditação silenciosa.

O Pai-nosso tornar-se-á a oração oficial do cristianismo, a oração própria de Jesus; revelando-nos seu desejo, aquilo que é bom e justo de pedir, ela nos foi transmitida, depois dos tempos apostólicos através da liturgia.

Ao lado desta oração rabínica, transmitida essencialmente aos homens, existe uma outra, transmitida, desta vez, a uma mulher, a uma Samaritana, isto é, a uma mulher considerada como herética pela religião e pelo povo ao qual Jesus pertence. Quando ela lhe pergunta: “Onde se deve adorar, sobre o monte ou em Jerusalém?”, Jesus responde: “Nem sobre este monte, nem em Jerusalém; os verdadeiros adoradores devem adorar em Espírito e em Verdade.

A tradução comumente encontrada do grego en pneumati kai aletheia para “em Espírito e em Verdade” faz da adoração, da meditação ou da oração um ato “intelectual”, quando se trata de apenas fazer um com o Sopro da Vida, o santo Pneuma, e devemos fazer isso com a-letheia, ou seja, “fora da letargia”, na vigilância, na atenção plena, desperta

Quando se diz, em português, que se deve “orar em espírito”, não é verdade que um grande número de pessoas esquecem essa dimensão “respiratória” da oração e da meditação? Essa presença do Sopro sutil que anima e re-anima, incessantemente todo o universo?

Aletheia, que se traduz por verdade, pode mais exatamente traduzir-se pelo substantivo “o despertar“. Jesus nunca disse “eu tenho a verdade”, mas “eu sou a verdade”: literalmente “eu sou desperto” (ego eimi aletheia). Isto, sem dúvida, evoca a vocês a etimologia da palavra Buda (de bodhi, aquele cuja bodhi, cuja inteligência, foi despertada). De novo, é necessário lembrar: o despertar não é propriedade dos budistas, como também a verdade não é propriedade dos cristãos. Buda e Cristo não pertencem unicamente às comunidades que reclamam seus nomes e suas experiências, mas a todos os humanos de boa vontade, atentos ao segredo que habita as profundezas de seu sopro e de sua consciência.

Yeshua (Jesus), fazendo a Samaritana lembrar-se de que a oração não é dependente de um lugar considerado sagrado (Jerusalém ou a Montanha da Samaria), a conduz ao seu próprio coração, lá onde está o “Eu Sou” (ego eimi). Antes de ser uma ontologia, o cristianismo é uma “odologia” (de odos, o caminho), um caminho que não conduz somente ao exterior dos ritos ou dos atos de justiça, mas também ao interior, “lá onde jorram rios de água viva“, lá onde os fluxos e refluxos da vida e do sopro nos sustentam e nos carregam.

Então compreendemos melhor quando Jesus diz: “A Verdade vos libertará”. Sim: a “vigilância”, a “atenção”, o “despertar” nos libertará… Quando somos vigilantes, atentos, despertos, não podemos mais ser “objetos” dos acontecimentos e das circunstâncias, permanecemos Sujeito… A consciência de estar aqui, em um sopro vigilante, nos conduz a ser “Sujeito”, a nos tornarmos “Eu Sou”.

Portanto, se queremos conhecer a fonte do nosso ser temos de escutar este Sopro. Em grego: aletheia: sair da letargia, deste sono do esquecimento do Ser. É um estado de alerta, de atenção. É por isto que se pode traduzir a palavra de Cristo: “Eu sou a Verdade”, por “Eu estou alerta, desperto”. A Verdade não é algo que se tem, é um estado de alerta, de vigilância, do Ser desperto.

Se dissermos que a prática proposta por Yeshua se dirige a uma mulher, seria mais justo dizer que ela se dirige ao “feminino”, à dimensão contemplativa que habita todo ser humano, homem ou mulher, é a esta dimensão de nós mesmos, a mais íntima, que se dirige este convite a rezar “no sopro e na vigilância, na atenção, desperto”, já que com o Pai-nosso Jesus se dirigiu à dimensão mais masculina do ser humano, dimensão pública e ativa.

Então se compreende melhor que Clemente de Alexandria e São João Cassiano tivessem feito alusão a esta prática de uma tradição secreta; não se trata absolutamente de um esoterismo no sentido ordinário do termo, mas de um despertar do ser interior (eso-anth opon) de que falarão São Paulo, os Padres do Deserto e, mais tarde, Mestre Eckhart. Pode-se dizer que esta prática é simples, natural: pela “Atenção ao Sopro” e por uma “vigilância pronta”, o humano pode ser conduzido à Presença que o faz ser e amar, à imagem de Deus nele, o Cristo “mais interior a mim do que eu mesmo”.

Trata-se de orar en pneumati kai aletheia, orar no Pneuma, no Sopro, respirar profundamente… é uma coisa completamente diferente de uma meditação intelectual. Orar na aletheia, “fora da lethe, fora do esquecimento e de qualquer letargia da consciência, orar em um estado de despertar e de vigilância, em uma memória ininterrupta do ser. Orar en pneumati kai aletheia é orar com todo o seu sopro e com toda a consciência. Meditar no Sopro e na consciência desperta.

A Samaritana

Jo 4,5-30; 39-42

A caminho da Galileia, Jesus chega a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do terreno que Jacó tinha dado a seu filho José. Ficava ali o poço de Jacó. Cansado da caminhada, Jesus sentou-se, assim, na beira do poço. Era por volta da hora sexta.

Chega uma mulher samaritana para tirar água. Jesus lhe diz:
“Dá-me de beber!”
(Os discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos).

Diz-lhe então a mulher samaritana:
“Como é que tu, um iehudim (=judeu), pedes de beber a mim, sendo eu samaritana?”
(Com efeito os judeus não se dão com os samaritanos.)

Jesus respondeu e disse-lhe:
“Se conhecesses o dom de Deus e quem é que te diz ‘Dá-me de beber’,
tu é que lhe pedirias a ele.
E ele te daria água viva!”

A mulher responde-lhe:
“Senhor, não tens sequer com que tirar a água
e o poço é fundo.
De onde obténs, então, essa água viva?
Por acaso és maior que o nosso patriarca Jacó,
que nos deu este poço,
do qual ele mesmo bebeu,
junto com os filhos e os rebanhos?”

Jesus respondeu e disse-lhe:
“Todo aquele que bebe dessa água terá sede de novo;
mas quem beber da água que eu lhe darei,
jamais terá sede.
A água que eu lhe der
se tornará nele uma fonte
que jorra para a vida eterna.”

Diz-lhe a mulher:
“Senhor, dá-me dessa água,
para que eu não tenha mais sede,
nem precise vir aqui tirá-la!”

Jesus diz-lhe:
“Vai, chama teu marido e volta aqui”.

A mulher lhe respondeu:
“Não tenho marido”.

Jesus lhe disse:
“Falaste bem: ‘não tenho marido’,
pois tiveste cinco e aquele que tens agora não é teu marido.
Nisto falaste a verdade”.

Diz-lhe a mulher:
“Senhor, vejo que és profeta.
Nossos antepassados adoraram a Deus neste monte.
E vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar”.

Diz-lhe Jesus:
“Acredita em mim, mulher,
vem a hora em que nem neste monte,
nem em Jerusalém adorareis o Pai.
Vós adorais o que não conheceis;
nós adoramos o que conhecemos,
porque a salvação vem dos judeus.
Mas vem a hora — e é agora —
em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e verdade,
(en pneumati kai aletheia)
pois tais são os adoradores que o Pai procura.
Deus é espírito
(Pneuma o theos, literalmente Deus é Sopro)
e aqueles que o adoram
devem adorá-lo em espírito e verdade
(en pneumati kai aletheia)
“.

Diz-lhe a mulher:
“Sei que vem o Messias,
que é chamado Cristo.
Quando ele vier,
nos comunicará todas as coisas”.

Diz-lhe Jesus:
“Sou eu (Ego Eimi=Eu Sou),
que falo contigo”.

Foi então que chegaram os seus discípulos e admiravam porque ele falava com uma mulher. Mas nenhum deles perguntou: “O que procuras?” ou: “Do que está falando com ela?”

A mulher, então, deixou seu cântaro e correu até a cidade, dizendo às pessoas:
“Vinde ver um homem que me disse tudo o que fiz. Não será ele o Messias?”
Elas saíram da cidade e foram ao seu encontro.

[…]

Daquela cidade foram muitos samaritanos que creram nele, por causa da palavra da mulher que testemunhava: “Ele me disse tudo o que fiz!” Por isso, quando os samaritanos foram encontrar com Jesus, pediam-lhe que permanecesse com eles. E ficou lá dois dias. Então muitos mais creram por causa da palavra dele, e diziam à mulher: “Já não é por causa do que tu falaste que cremos. Nós mesmos ouvimos, e reconhecemos que ele é realmente o salvador do mundo”.

fontes do texto:
(trechos recolhidos das seguintes publicações)
LELOUP, Jean-Yves. A montanha no oceano: meditação e compaixão no budismo e no cristianismo. Petropólis: Vozes, 2002. p.22-24.
LELOUP, Jean-Yves. Sabedoria do Monte Athos. Petropólis: Vozes, 2012. p.101.
LELOUP, Jean-Yves. O Evangelho de João: traduzido e comentado por Jean-Yves Leloup. Petropólis: Vozes, 2000. p.48-52; 223-236.
BENSAID, Catherine; LELOUP, Jean-Yves. O essencial no amor: as diferentes faces da experiência amorosa. Petropólis: Vozes, 2006. p.95-100.

fontes das imagens:
Jesus Mafa Project. Jesus and the Samaritan Woman. Disponível em <https://diglib.library.vanderbilt.edu//act-imagelink.pl?RC=48282>
PASTRO, Cláudio. A Samaritana.
LOPEZ, Berna. Jésus et la Samaritaine. Disponível em: <https://www.evangile-et-peinture.org/la-samaritaine/>
Anonymus. Jesus and the Samaritan woman. A miniature from the 12th-century Jruchi Gospels II MSS from Georgia. Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jesus_and_the_Samaritan_woman_(Jruchi_Gospels_II_MSS,_Georgia,_12th_cent.).jpg>
STANKOVA, Julia. Cristo e a Samaritana. Disponível em: <http://www.juliastankova.com/images/2019/Christ-and-the-Samaritan9.jpg>
STANKOVA, Julia. Cristo e a Samaritana. Disponível em: <http://www.juliastankova.com/images/2018/Christ-and-the-Samaritan4.jpg>