O significado das coisas não é apenas o que elas têm de si, mas o que podemos descobrir que elas têm para nós. Muitas das abordagens que hoje se publicam sobre a mística têm, infelizmente, apenas um caráter histórico, dissecam o passado, reforçam o nosso sentimento de distância e inatualidade em relação ao objeto que abordam. Ou optam por uma singularização tal da mística que parece só ser possível pensar nela através de casos individuais (a mística de Hadewijch, de Hildegarda de Bingen, de Teresa de Ávila, de João da Cruz) e nunca numa apropriação verdadeiramente comum. Por isso, se me fosse dado um instante, apenas um instante, para explicar o significado de mística, a frase de Michel de Certeau seria perfeita: “É místico aquele ou aquela que não pode deixar de caminhar”.
Sei que pode parecer, pelo seu radical minimalismo, até uma frase chocante, se quisermos considerar a complexidade e o peso de história que a categoria “mística” adquiriu. E nem justiça se faz ao próprio Michel de Certeau, que, pela extensão e sofisticação dos seus escritos sobre o tema, avisou claramente que a mística se aprofunda num longo e pacientíssimo colóquio. Contudo, mesmo as grandes viagens têm de começar com um pequeno passo, e é desse modo humilde que compreendemos esta nossa contribuição. Ora, na frase “É místico aquele ou aquela que não pode deixar de caminhar”, identifico de início uma extraordinária qualidade: não exclui ninguém, testemunha como a mística diz respeito a todos, é literalmente universal. Isso é uma vantagem enorme, pois não é essa, erradamente, a fama que a mística tem. Ela foi vista como uma experiência só de alguns, uma via marginal e elitista, desligada das situações concretas onde vive a maior parte dos homens, impermeável às aflições do presente. Os escritos de figuras como Merton, Certeau ou Raimon Pannikar ajudaram-nos a revolucionar o nosso olhar. Para Pannikar, a mística não é senão “a experiência integral da vida”, e o místico é aquele que vive aberto à banda larga da realidade, atendo e comprometido com a dor no mundo. A fome e a sede de justiça não podem não encontrar lugar no seu coração. Mas o místico não se deixa dominar por nenhuma etapa ou representação. A sua espiritualidade desenvolve-se numa posição ambivalente: é ao mesmo tempo encarnada e comprometida, mas genuinamente desprendida e livre. Mística há de sempre ser sinônimo de liberdade. Essa liberdade imensa, de tudo, de todos e de si, que requer a compreensão da interdependência que nos custa tanto ver: entre micro e macro, próximo e distante, dentro e fora, nosso e dos outros, atividade e repouso, silêncio e palavra, quietude e gesto, imobilidade e viagem, primavera e inverno, fome e pão, agora e depois.
O místico é aquele que descobre que não pode deixar de caminhar. Seguro daquilo que lhe falta, percebe que cada lugar por onde passa é ainda provisório e que a demanda continua. Não pode ser só isso. E essa espécie de excesso que é o seu desejo o faz ir além, atravessar e perder os lugares. Como recorda Michel de Certeau, o místico “não habita em parte alguma, ele é habitado”. O místico amarra-se, como Ulisses, ao mastro de uma esperança que não pertence ao futuro, mas ao invisível. Quer dizer: ao ainda não (visível).
fonte do texto:
MENDONÇA, José Tolentino. A Mística do instante: o tempo e a promessa. São Paulo: Paulinas. 2016. p. 31-32.
Disponível em <https://www.paulinas.com.br/produto/mistica-do-instante-a-2554>fonte da imagem:
Female Figure, ca. 3500-3400 B.C.E. Clay, pigment, 11 1/2 x 5 1/2 x 2 1/4 in. (29.2 x 14 x 5.7 cm). Brooklyn Museum, Charles Edwin Wilbour Fund, 07.447.505. Creative Commons-BY (Photo: Brooklyn Museum, 07.447.505_SL1.jpg)
[disponível em <https://www.brooklynmuseum.org/opencollection/objects/4225>]