EU SOU O MEU CORAÇÃO, porque é ele que me distingue, que me molda na minha identidade espiritual e que me põe em comunhão com as outras pessoas. O algoritmo que atua no mundo digital mostra que os nossos pensamentos e as decisões da nossa vontade são muito mais “standard” do que pensávamos. São facilmente previsíveis e manipuláveis. Não é o caso do coração.
Trata-se de uma palavra importante para a filosofia e a teologia, que procuram alcançar uma síntese integral. Na verdade, a palavra “coração” não pode ser explicada plenamente pela biologia, pela psicologia, pela antropologia ou por qualquer outra ciência. É uma daquelas palavras originais que «significam realidades que dizem respeito ao homem no seu conjunto enquanto pessoa corpóreo-espiritual» [Karl Rahner]. Assim, o biólogo não é mais realista quando fala do coração, porque vê apenas um aspecto dele e o todo não é menos real, pelo contrário, é-o ainda mais. Tampouco uma linguagem abstrata poderia ter o mesmo significado concreto e, simultaneamente, integrador. Se o “coração” leva ao mais íntimo da nossa pessoa, permite também que nos reconheçamos na nossa integralidade e não apenas num mero aspecto isolado.
Por outro lado, este poder único do coração ajuda-nos a compreender porque se diz que quando apreendemos uma realidade com o coração podemos conhecê-la melhor e mais plenamente. Isto conduz-nos inevitavelmente ao amor de que esse coração é capaz, porque «o mais íntimo da realidade é amor» [Karl Rahner]. Para Heidegger, segundo a interpretação de um pensador contemporâneo, a filosofia não começa com um conceito puro ou uma certeza, mas com uma comoção: «O pensamento deve ser comovido antes de trabalhar com conceitos, ou enquanto trabalha com eles. Sem a comoção, o pensamento não pode começar. A primeira imagem mental seria a pele arrepiada. É a comoção que primeiramente dá o que pensar e perguntar. A filosofia ocorre sempre numa tonalidade afetiva fundamental (Stimmung)» [Han, Byung-Chul. O Coração de Heidegger. Sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger (Petrópolis 2023), 93-94.]. E é aqui que surge o coração, que «guarda as tonalidades afetivas fundamentais, […] trabalha como “guardião da tonalidade afetiva fundamental”. O “coração” ouve não-metaforicamente a “voz silenciosa” do ser ao se deixar afinar e determinar por ela» [Byung-Chul Han].
O coração que une os fragmentos
Ao mesmo tempo, o coração torna possível qualquer vínculo autêntico, porque uma relação que não é construída com o coração não pode ultrapassar a fragmentação do individualismo. Restariam apenas duas mónadas que se justapõem, mas não se ligam verdadeiramente. Uma sociedade cada vez mais dominada pelo narcisismo e pela autorreferencialidade é uma sociedade “anti-coração”. E, por fim, chega-se à “perda do desejo”, porque o outro desaparece do horizonte e nos fechamos no nosso egoísmo, sem capacidade para relações saudáveis [Byung-Chul Han, in Agonia do Eros]. Como resultado, tornamo-nos incapazes de acolher a Deus. Como diria Heidegger, para receber o divino é preciso construir uma «casa de hóspedes» [Martin Heidegger in Explicações da Poesia de Hölderlin].
Vemos assim como no coração de cada pessoa se produz esta ligação paradoxal entre a valorização do próprio ser e a abertura aos outros, entre o encontro muito pessoal consigo mesmo e o dom de si aos outros. Só nos tornamos nós próprios quando adquirimos a capacidade de reconhecer o outro, e só encontra o outro quem é capaz de reconhecer e aceitar a própria identidade.
O coração é também capaz de unificar e harmonizar a própria história pessoal, que parece fragmentada em mil pedaços, mas na qual tudo pode adquirir sentido. É isso que o Evangelho exprime no olhar de Maria, que olhava com o coração. Ela foi capaz de dialogar com as experiências que conservava, meditando-as no seu coração, dando-lhes tempo: simbolizando-as e guardando-as no seu interior para as recordar. No Evangelho, a melhor expressão do que pensa o coração é oferecida por duas passagens de São Lucas que nos dizem que Maria “guardava (synetérei) todas estas coisas, ponderando-as (symbállousa) no seu coração” (cf. Lc 2, 19.51). O verbo symbállein (do qual provem a palavra “símbolo”) significa ponderar, unir duas coisas na mente, examinar-se, refletir, dialogar consigo mesmo. Em Lc 2, 51, dietérei é “conservava com cuidado”, e o que ela guardava não era apenas “a cena” que via, mas também o que ainda não compreendia, conservando-o presente e vivo, na esperança de unir tudo no seu coração.
Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano. O que nenhum algoritmo conseguirá abarcar é, por exemplo, aquele momento de infância que se recorda com ternura e que continua a acontecer em todos os cantos do planeta, mesmo com o passar dos anos. Penso na utilização do garfo para selar as bordas daquelas empadas caseiras que preparávamos com as nossas mães ou avós. É aquele momento de aprendizagem culinária, a meio caminho entre a brincadeira e a idade adulta, em que assumimos a responsabilidade do trabalho para ajudar o outro. Tal como o exemplo do garfo, poderia citar milhares de pequenos pormenores que sustentam a biografia de cada um: sorrir com uma piada, fazer um desenho em contraluz numa janela, jogar o primeiro jogo de futebol com uma “bola de trapos”, cuidar de lagartas numa caixa de sapatos, secar uma flor entre as páginas de um livro, cuidar de um pássaro que caiu do ninho, formular um desejo ao despetalar uma margarida. Todos estes pequenos pormenores, o ordinário-extraordinário, nunca poderão estar entre os algoritmos. Porque o garfo, as piadas, a janela, a bola, a caixa de sapatos, o livro, o pássaro, a flor… são sustentados pela ternura preservada nas memórias do coração.
Este núcleo de cada ser humano, o seu centro mais íntimo, não é o núcleo da alma, mas da pessoa inteira na sua identidade única, que é alma e corpo. Tudo está unificado no coração, que pode ser a sede do amor com todas as suas componentes espirituais, psíquicas e também físicas. Em última análise, se aí reina o amor, a pessoa realiza a sua identidade de forma plena e luminosa, porque cada ser humano é criado sobretudo para o amor; é feito nas suas fibras mais profundas para amar e ser amado.
fonte do texto:
FRANCISCO. Carta Encíclica Dilexit Nos: sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2024. parágrafos 14-21.
Disponível em <https://www.paulinas.com.br/produto/carta-enciclica-dilexit-nos-doc-216-9831> ou acesse o texto completo da encíclica no site do Vaticano <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/20241024-enciclica-dilexit-nos.html>.fonte das imagens:
Vatican News. Momento de oração com o Papa Francisco na Praça São Pedro. mar/2020. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=JepStYxBV2o>
GUEDES, Magdala. Oráculo do Pão: alquimia e milagre [ilustração de capa]. Belo Horizonte: Pop Paper, 2009. Disponível em <https://www.oraculodopao.com.br>