REZAR DE OLHOS ABERTOS

REZAR NA ERA DA TÉCNICA

Em 1965, o ano do encerramento do Concílio Vaticano II, o teólogo Jean Daniélou publicou um volume com um título surpreendente, e que deu azo a aceso debate: A Oração, Problema Político. Mas, como explica o autor, foi um risco calculado. Diz ele: “A política e a oração são duas realidades que, por hábito, não se confrontam uma com a outra. E, contudo, se escolhi este título, fi-lo em plena consciência, porque me pareceu essencial sublinhar, mesmo se de um modo provocador, que entre o domínio do homem interior e aquele do progresso não deveriam existir distâncias radicais.” Daniélou via na separação entre religião e civilização um duplo perigo, que penaliza tanto uma como outra. Uma fé desligada da cultura rapidamente se torna acantonada a uma elite espiritual, e perde a condição de acessibilidade e universalidade que é chamada a ter. Uma cultura separada da fé fica incompleta e, nesse sentido, deixa de representar dimensões e necessidades fundamentais da pessoa humana. Por isso, Daniélou considerava que uma reflexão sobre a oração e as suas práticas era não só um argumento interno dos crentes, mas também um assunto de cidade e de cidadania.

A ORAÇÃO COMO TRAÇO ANTROPOLÓGICO

A confirmá-lo está o facto de que a oração é um traço antropológico permanente. Este ser humano que continuamente se interroga sobre o sentido da existência; que se debate, de olhos abertos, com o enigma das próprias perguntas; que tateia o mistério, por tentativas e estradas múltiplas, sedento da revelação dessa verdade; que, inevitavelmente, matura a consciência do seu estar no mundo na interseção da imanência e da transcendência: este ser humano não deixou nunca de rezar através dos tempos.

Demonstram-no a arqueologia e os testemunhos iconográficos das idades e geografias mais diversas. Atestam-no os hinos egípcios, as composições devocionárias que encontramos entre assírios e babilónios, os formulários dos cultos pagãos na Grécia Antiga, o profundo sentimento religioso que emerge da literatura antiga ou dos primeiros textos filosóficos. É impossível pensar a história humana sem atender à respiração, mesmo que dramática e inconciliada, da sua religiosidade, refletida na oração. Proclo de Constantinopla, um dos últimos grandes neoplatónicos, empresta voz a esta expectativa universal, dizendo: “Incognoscível, ninguém te contém. Tudo o que pensamos pertence-te. Estão em ti os nossos males e os nossos bens, de ti depende todo o nosso anseio, ó inefável, que as nossas almas sentem presente, elevando-te um hino de silêncio.” E, antes dele, São Gregório de Nazianzo havia sustentado uma evocação semelhante: “Só tu és o inefável, pois todas as palavras te devem a sua origem. Só tu és o incognoscível, pois todos os pensamentos provêm de ti. Todas as coisas te cantam: tanto as que têm voz, como as que não a possuem. Tudo o que criaste te procura, entre gemidos. Os seres todos dirigem-te um hino de silêncio.” Proclo escreveu no século V. Nazianzo antes, no século IV. Mas hoje, como abordar hoje a questão da oração?

UMA ACELERAÇÃO DO TEMPO

O romance de Gonçalo M. Tavares Aprender a Rezar na Era da Técnica (2007) pode ser tomado como detentor de alguns dos sintomas dominantes da nossa época. A narrativa relata o gradual processo de desumanização que ocorre quando a técnica se sobrepõe, sem mais, à natureza, procurando substituí-la por um totalitário entusiasmo pela ciência, pelo poderio tecnológico ou pela guerra. O resultado é a desagregação do humano. Na verdade, a vertigem absoluta do poder gera a absoluta impotência de avizinhamento a um horizonte de unidade e sentido. Mas, curiosamente, o final do romance de Gonçalo M. Tavares funciona como uma espécie de parábola. Ao prometaico protagonista, Lenz Buchmann, só uma teofania é agora possível: aquela mediada pela máquina. O autor descreve-a assim: “É uma luz estranha, aquela, que não parece ser da mesma família da luz elétrica da lâmpada. É uma luz completamente diferente. O que parece estar a acontecer naquela televisão, assim ele o pensa, é uma avaria: algo falhou e já não se vê o mundo, mas apenas um foco de luz que se acende e se apaga. […] Terá sentido nesse instante vontade de chamar por alguém, mas não se lembrou de nenhum nome.” A consumação da existência realiza-se como “avaria” e “falha”, como alguma coisa que parece estar a acontecer na televisão. E no momento decisivo, mesmo se subsiste a “vontade de chamar por alguém”, o homem não se recorda já de nenhum nome.

Quem leu o poderoso romance de Gonçalo M. Tavares reconhece aquilo que Daniélou também conclui: “A civilização em que vivemos torna a oração difícil.” E não só porque, de tantos modos, a declara inconveniente ou obsoleta. A crise da oração está, de facto, associada a uma crise antropológica. É necessário modificar o ser humano para conseguir desativar essa peregrinação interior que a oração significa. Daniélou sublinha-o: “O progresso tecnológico comporta uma mudança de ritmo na vida do homem, uma aceleração do tempo que torna mais difícil encontrar o mínimo espaço de que tem necessidade a vida de oração, mesmo a mais modesta.” Contudo, o título do livro de Gonçalo Tavares (Aprender a Rezar na era da técnica, 2007) deixa-nos em mãos um problema: aprender a rezar. De que se trata?

PERANTE O ABERTO E DENTRO DA EXPERIÊNCIA

Sirvo-me de dois textos literários, mas para lê-los em chave espiritual no diálogo com a pergunta “Como se aprende a rezar?” O primeiro é um trecho de O livro dos abraços, do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Conta a história de um menino, Diego, que viaja para o Sul com o pai para olhar o mar pela primeira vez. Quando chegam à praia, depois de muito caminharem, o mar está diante de seus olhos. Era uma azul e contínua imensidão sem palavras. E o filho, colado ao pai, pediu-lhe baixinho: Me ajuda a olhar!(1)

O segundo é uma passagem de Os cadernos de Malte Laurids Brigge (1910), de Rainer Maria Rilke. A explicação que Rilke fornece sobre a forma como se escreve um poema oferece-nos, porventura, um paralelo para pensar a oração. O poeta diz: “Os versos não são, como imaginam as pessoas, simples sentimentos… Eles são experiências.” E mais ainda: só quando estas “chegarem a fazer parte de nossas entranhas, quando se converterem em aspectos e gestos do nosso ser, quando já não têm nome e já não se distinguem de nós mesmos – só então é que pode suceder a primeira palavra dum verso que brota.

A história trazida por Galeano, aplicada à oração, sublinha alguns elementos a que vale a pena atender: a itinerância (de fato, a oração implica uma deslocação interior, um movimento de procura); a exposição a alguma coisa ou a alguém maior do que nós (a oração coloca-nos na soleira do infinito); a consciência de que não se trata de uma coisa que possamos realizar sozinhos (a oração é relação, abandono do eu a um tu); o pedido endereçado ao pai, “me ajuda a olhar!” (a oração, e aqui falo sobretudo da oração cristã, é contato filial, abertura à ação de um Deus que se revela como Pai).

reprodução imagem orante Brooklin MuseunA afirmação de Rilke situa, no meu entender, muito bem a oração: não se trata de uma emoção ocasional, mas de uma verdadeira e consistente experiência. A oração é um assunto “das nossas entranhas”, é uma gestualidade intrínseca ao que somos, uma expressão do ser. A nossa capacidade de rezar amplia-se quando compreendemos que nós próprios somos uma oração.

Lembro-me de uma definição de oração dada pelo filósofo judeu Martin Buber. Ele compara o orante ao mendigo que não come nada há já três dias e cujas vestes são as mais miseráveis que se possa imaginar. Mas, por uma graça inesperada, ele é conduzido diante do rei, assim como está: com a sua miséria e com a sua fome extrema. Nessa ocasião, o importante não é o que ele dirá. O rei saberá interpretar imediatamente tudo. Aquele mendigo é, só por si, um grito de socorro. Aquele mendigo é a oração.

ABRIR OS OLHOS E REZAR

De novo: como se aprende a rezar? Há pessoas que para rezar baixam os olhos, escondem na mãos o rosto, voltam-se para o interior. E a oração configura-se como uma imersão, um mergulho semelhante à imagem oferecida pelo pequeno poema de Matsuo Bashô:

Silêncio
Uma rã mergulha
Dentro de si.

A oração é uma pedra que se afunda no interior vasto a que acedemos. Há outras pessoas, porém, que abrem esforçadamente os olhos ao rezar, que finalmente os abrem numa tentativa de olhar a vida no seu flagrante espanto, no seu rasgão dilacerante e no seu prazer vivo. Quer umas, quer outras estão certas. Todas as formas de rezar são insuficientes. Todas são eficazes. A arte de rezar é a arte de ser, apenas isso. O essencial é que a oração não seja um mero dizer, mas um dizer-se, e um dizer-se confiado. Mesmo que usemos uma oração vocal, o que conta verdadeiramente não depende das palavras. Podemo-nos dizer de tantas maneiras: no desenho de uma palavra ou de um silêncio, na fronteira do gesto ou da contemplação, no movimento de quem parte ou na passividade de quem se entende à espera, porque, como ensina o bíblico livro das Lamentações (3:26), “é bom esperar em silêncio a salvação de Deus”.

UM EU DIANTE DE UM TU

Os Padres do Deserto ensinavam, por exemplo, que erguer as mãos já é rezar. São Francisco de Assis defendia o mesmo sobre o andar a pé. Um dos tratados clássicos medievais sobre a oração, Os Nove Modos de rezar de São Domingos, sublinhava a importância de implicar na oração a dimensão corporal. Fundamental é a compreensão de que uma prece, por simples e balbuciada que seja, inscreve-nos no dinamismo de uma relação. Há um eu e um tu. Não há oração vital sem um eu diante de um tu. Teóforo, o monge, dizia com sentido de humor que, para um orante, a consciência de que está perante Deus tem de ser tão forte e real como uma dor de dentes. Podemos tentar esquecer, mas é impossível. Esse incômodo toma conta dos nossos pensamentos. Contamina tudo. E desencadeia em nós, desse modo, um fenômeno de concentração. Simone Weil escreveu: A verdadeira oração é feita de atenção. É a orientação para Deus de toda a atenção de que a nossa alma é capaz. E da qualidade da atenção depende em muito a qualidade da oração.” O desafio da oração é o da vigilância, que outra coisa não é que ver melhor, sentir melhor, escutar melhor o que Deus revela. A Bíblia, autêntico manual de introdução à aventura espiritual, oferece-nos muitos exemplos de como é necessário reganhar esta atenção para escutar Deus que nos fala. Ao atento Abraão, Deus manda deixar a sua pátria e entregar-se a um nomadismo e a uma promessa. Ao atento Moisés, Deus chama para que se adentre na sarça que arde sem se consumir.

QUANDO TOCAMOS O SILÊNCIO DE DEUS

Não pensemos na oração como um caminho linear, porque a própria vida não é assim: é cheia de altos e baixos. Quem quer que conjugue o verbo “rezar” sabe que ele inclui também um trânsito purgativo. Tarde ou cedo sentimo-nos feridos pela contradição irresolúvel, pela dor injustificável, pela irreversibilidade que nos leva a atravessar linhas de fogo. A oração não é aquele momento em que consigo libertar-me e fugir. É, sim, aquele instante em que o Espírito se une à minha fraqueza e me dá forças para abraçar a própria ferida, isto é, aceitar aquilo que me esmaga, aquilo que é maior do que eu e não consigo explicar, aquilo que se abate sobre mim sem que eu possa alterar. A maior parte da nossa oração é vazio e silêncio, não nos iludamos. Basta ler os escritos espirituais de Santa Teresa de Jesus ou, mais próxima de nós no tempo, de Santa Teresa de Calcutá. A primeira testemunhava que, por anos e anos, a oração lhe sabia, na boca, a palha seca. A segunda, nas cartas aos seus confessores, relata a aridez interior e a experiência de solidão abissal que sempre, mas mesmo sempre, a acompanharam. Pode parecer um paradoxo, mas a oração não se torna menos vital quando tocamos o silêncio de Deus, quando os nossos pés como que tocam a orla da sua ausência. Muitas vezes é nesse paradoxal momento que a vida espiritual se intensifica ou relança.

EXPERIÊNCIA DE DEUS

Aprendemos a rezar quando não temos nada nem ninguém a não ser o Pai. A viragem que Jesus de Nazaré introduz é precisamente essa: considerar Deus a partir de dentro. Jesus apresenta-se como o Filho de Deus. E a relação que mantém com Deus é uma relação filial. Isto é, Jesus vem dizer que Deus o impregna profundamente, a ponto de ele ser Filho e se descobrir como tal. Repare-se na intensidade do testemunho que Jesus dá: “Disse-lhe Filipe: ‘Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta!’ […] Jesus disse-lhe: ‘Quem me vê, vê o Pai. […] Crede-me: eu estou no Pai e o Pai está em mim.” (João 14:8-11)

De certa maneira, o programa de Jesus é esta filiação, este entrosamento filial. E na única oração que Jesus ensina, que serve de resumo e modelo para toda a oração cristã, o sintagma vocativo que a abre, “Pai nosso”, torna-se claramente a chave. O Pai-Nosso pede ao Pai que seja Pai. Apenas isso. O destinatário da oração, Aquele a quem dirigimos, emerge como objeto da própria súplica. A proposta cristã faz da oração não apenas uma experiência interior, mas também uma experiência de Deus.

* * *

(1) Citação de Eduardo Galeano:
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
– Me ajuda a olhar!

fonte do texto:
MENDONÇA, José Tolentino. Rezar de olhos abertos. Lisboa: Quetzal Editores, 2020. p.13-21
GAELANO, Eduardo. O livro dos abraços. 4a ed. Porto Alegre: L&PM, 1995. p.15

fonte das imagens:
Catacumba de San Genaro. Nápoles, Itália. Reprodução de imagem disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Catacombs_of_San_Gennaro#/media/File:Catacombe_di_San_Gennaro_021.jpg>
ZÁBORSKÝ, Ladislav. Reprodução de telas disponíveis em: <https://melaniejeanjuneau.blog/2016/01/26/ladislav-zaborsky-imprisoned-for-his-catholic-art/amp/>
Female Figure, ca. 3500-3400 B.C.E. Clay, pigment, 11 1/2 x 5 1/2 x 2 1/4 in. (29.2 x 14 x 5.7 cm). Brooklyn Museum, Charles Edwin Wilbour Fund, 07.447.505. Creative Commons-BY (Photo: Brooklyn Museum, 07.447.505_SL1.jpg)
[disponível em <https://www.brooklynmuseum.org/opencollection/objects/4225>]