Os cristãos começam esta semana a quaresma: um ciclo espiritualmente intenso de 40 dias que os prepara para celebrar a Páscoa. A quaresma é um segmento do chamado ano litúrgico onde, numa experiência circular da história, os crentes repetem e atualizam nas suas vidas o impacto da salvação de Cristo. De fato, não se trata apenas de fazer memória das várias etapas da existência histórica de Jesus, mas de receber e maturar, a essa luz, uma nova visão deles próprios. Nesse sentido, não admira que, por exemplo, Carl Jung tenha individuado nos diversos momentos do ano litúrgico uma espécie de sistema terapêutico, pois os ritos são também essenciais ferramentas de cura. Importa, por isso, libertar a quaresma dos reducionismos que a neutralizam. A casuística e a moleza acomodatícia depressa desfiguram o espírito e, aquilo que nos é oferecido como uma oportunidade de aprofundar com autenticidade a vida, descamba numa enésima forma de escapismo. Gosto do modo como um clássico contemporâneo, Romano Guardini, define a liturgia: é uma expansão da vida que toma posse da sua plenitude, já que os tempos e os rituais litúrgicos não são coisas que criamos, mas obras de arte que somos ou em que nos tornamos.
O passo do evangelho que se lê no primeiro domingo da quaresma — e que lhe serve de chave — é o que relata as tentações de Jesus no deserto. O desafio é que aceitemos escutar a vida que nos pertence como se estivéssemos realmente num deserto, sem armaduras nem desculpas, deixando que as perguntas fundamentais nos habitem de novo, interrogando-nos sobre o que fizemos da nossa liberdade ou do nosso amor, reconhecendo que o vazio desprotegido da paisagem é afinal simétrico ao nosso camuflado vazio, urdido por este vício nosso de viver às metades. Mesmo sabendo, como escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen, que
“Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida”.
O texto evangélico das tentações é um mapa para readquirir a inteireza e coloca-nos perante três núcleos de questões:
1) se é certo que não vivemos só de pão, vivemos de quê para lá do pão? Qual é verdadeiramente a nossa fome e a nossa sede? Onde é que elas acabam? Aonde nos conduzem?
2) a fé serve-nos para quê? Para submeter Deus às condições que consideramos necessárias para acreditar nele ou, antes, para nos abrirmos, como nómadas e peregrinos, à radicalidade do mistério?
3) estamos dispostos a renunciar ao equívoco do domínio e da posse, quaisquer que eles sejam, como supostas fontes de realização e de sentido, reduzindo a isso o horizonte de significação da vida? O que fazemos com as coisas que possuímos? E também: o que é que as coisas que possuímos fizeram de nós?
A quaresma é uma proposta de discernimento e viragem. Os instrumentos práticos que apresenta para que operemos esta transformação espiritual são de ordem prática, não abstrações: o jejum, a oração e esmola.
O jejum, como explica o Papa Francisco na mensagem quaresmal, é uma experiência de privação voluntária (de alimento ou de um tipo de alimentos; de dependências de todo o género, pequenas e grandes; dos consumos fáceis a que nos permitimos, etc.), adotando um estilo assumidamente frugal que ajude a devolver-nos liberdade. A oração volta o nosso olhar para Deus, para as coisas grandes e amplia a nossa respiração. A esmola retira-nos do conforto autorreferencial. Torna objetivos a compaixão, a solidariedade e o cuidado que nos permitem passar da indiferença à responsabilidade pelos outros, sobretudo os mais vulneráveis.
A nossa vida não é só um conjunto de inevitabilidades: ela tem de ser uma opção fundamental, isto é, tem de ser algo que eu decido, que eu quero, um caminho que escolho, em diálogo com o Espírito. A minha vida tem de ter fundamento, para não ser uma deriva, um fragmento flutuante no oceano convulso. Precisamos de um centro. E para ter um centro, precisamos de momentos de recentramento para ouvirmos a nossa voz interior, para nos escutarmos mais profundamente, para perguntarmos:
«O que é que eu vivo? O que me enlaça? O que procuro? O que sou?».
Estes momentos de recentramento são revitalizadores.
A Quaresma não são 40 dias para tentarmos fazer rituais mais ou menos arcaicos. A Quaresma é um tempo de revitalização, um tempo para nos colocarmos as perguntas-chave que vão favorecer o renascimento do que somos. E Deus sabe como cada um de nós precisa de renascer. Por isso este é o tempo de voltar a si.
fonte do texto:
MENDONÇA, José Tolentino. [Trechos de textos pesquisado na web, em especial:] A quaresma como terapia. Disponível em <https://www.imissio.net/artigos/53/3997/a-quaresma-como-terapia-por-tolentino-mendonca/>