ENRAIZAR-SE NO SAGRADO

rumi A fé enraizada no corpo molda o vaso (atanor*) estruturante para abraçar a totalidade alquímica da vontade transformadora.

O corpo foi criado para dançar. A energia do movimento tem o poder de alinhar nossos sentidos. Estão em nossas células os códigos do despertar. É pelo ouvido biológico que ouvimos os estalos mediúnicos existentes em cada ser humano. Uma dança altamente inspirada revela arquiteturas de movimentos completos em si. São perfeitos saberes perenes. Através do teor vibratório destas danças experimentaremos o impulso sagrado que nos enraíza em nós mesmos. A ciência esotérica fala de um alinhamento com o antakarana, uma antena por onde atraímos tudo que é necessário ao caminho de volta. O sufismo fala de uma filosofia para o autoconhecimento e contato com o divino. Um movimento sagrado contém a vibração perfeita que nos surpreende por percebermos fisicamente a presença de algo superior.

O dervixe dança para o Criador. Isto pode parecer incompreensível ao observador. É um ato de reconexão com a força criadora. O corpo não é nossa morada eternal. É canal para que a alma consolide sua dança. A dança da leveza. O corpo absorve tudo do mestre interior. A maestria não impõe nada, nem mesmo a própria energia de luz. As mãos em oração têm o poder de moldar uma vontade superior.

O que resta é a presença, o caráter. O artista vai fazendo sua história sem se preocupar com o que ganha ou perde. Os caminhos são árduos e confusos. Na sintonia amorosa, o eu elucidado não precisa dominar. Justamente, a arte é a superação do eu existencial para o self transcendente. O mergulho é infinito. E na dança exercitamos a união entre a Terra e o Céu, nosso duplo pertencimento. Por meio da arte podemos canalizar grande quantidade de energia divina. A força criativa em movimento dança os cinco elementos. Dançar pode ser a conexão com o vento que é sopro e transparência do espírito. Dançar pode ser fluido como a água que tudo dissolve, purifica. Dançar é repousar no chão adquirindo a firmeza perene de uma grande rocha. Dançar é também o festejo flamejante da luz do sol. Dançar é o éter do sonhador que ascende.

Aquele que se precipita pelos caminhos da dança precisa de paciência para subir a escadaria labiríntica do espírito. Sempre pronto a emanar no corpo adestrado, o espírito pode ser o som que surge de uma vibração invisível. Também o movimento que se manifesta em deslocamento nasce do impulso. A duração de um movimento depende da energia impelida. A fluência orgânica da dança é como um rio. Uma coreografia deve trazer a convicção de um grande arco, uma estrela, uma mandala.

Dançar para ser sincero. Sendo amplo nas formas de agir e permanente na escolha de ser. Tudo que dói pode também libertar. O espaço transcendido contém a luz manifestada. Acordo a cada passo. Pisar no chão é meu exercício de convicção cotidiana. Meu corpo precipita sua vontade de ser feliz. Dançar com o coração ajuda a entender a lógica de Laban de que “espaço é o aspecto escondido do movimento e o movimento é um aspecto visível do espaço”. Faz sentindo dizer que a energia existente no universo é o que nos interpenetra. “Atrás de todo mistério existe uma verdade muito simples”, dizia Marceau. Dançar é uma atividade delicada, mesmo dentro dos momentos de extrema pulsão. Transcendemos a carne e os ossos pela verdade do movimento. Esta verdade agradece as articulações do corpo e sua natureza.

O gesto expressivo transmite uma energia de força comunicativa imediata e ganha sua total presença quando impulsionado pelos ritmos do coração. A minha alma nômade foi se deslocando, não somente em diversos territórios. Permutando através de diversos universos, moldei uma idiossincrasia, muitas vezes parecendo contraditória, para afirmar a qualquer custo minhas incoerências dentro de sistemas esmagadores. Encontro coerência quando reagrupo identidades. A arte vai reunir tudo. O sistema fica sempre aberto. Reflete a busca apaixonada pela essência que imprime o desejo silencioso de manifestar a razão de existir. A experiência corporificada de uma oitava eleva a consciência para que a vida ascenda noutro ciclo, carregando os grãos de areia das dunas e alguns saberes para as escalas seguintes. Isto porque a lei das Oitavas que rege os processos imbrica sempre em um novo início.

O acasalamento com a arte ilumina. Esta experiência aponta para os primórdios da humanidade, para o êxtase. A única condição é a liberdade que não elimina a precisão do gesto, pelo contrário. De uma forma ou de outra, o enredo da nossa história é formatado em parte por nós mesmos. A outra parte vem nos acasos.

(*) O atanor também chamado forno cósmico, é um forno utilizado na alquimia para fornecer calor para a digestão alquímica. Era considerado o forno filosófico, o qual deveria permitir a obtenção da pedra filosofal (lapis philosophorum)

fonte do texto:
CARMO, Lina do. Corpo do mundo: criações, raízes e caminhos improváveis na poética do movimento. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2015. p.422-424
Disponível em: <https://www.livrosilimitados.com.br/product-page/corpo-do-mundo>

fonte da imagem:
VOSTRIKOV, Denis. Ensaio fotográfico de apresentação de dança da coreógrafa Maria Plotnikova [2012?]. Disponível em <https://maria-plotnikova.com>