TROCAR DE MÃOS

cena do filme A Liberdade é Azul: anciã tenta jogar garrafa em coletor de resíduosNuma cena de um dos filmes de Krzysztof Kieślowski(*), uma personagem aproxima-se da janela, num momento de particular dilema da sua história, e vê, lá fora, uma anciã que sobe vagarosamente a rua com um saco de compras em cada mão. Vê-a parar um instante, um instante só, para trocar os sacos de mão (o que estava na direita passa para a esquerda e vice-versa), como tantas vezes nós mesmos fazemos quando transportamos coisas que pesam. E, depois disso, a anciã prossegue o caminho. Pergunto-me o que terá visto a personagem de Kieślowski naquela imagem minúscula e imensa, e também o que vemos nós, o que escutamos interiormente quando nos aproximamos das janelas a certas horas, buscando, sem saber, o socorro da exterioridade.

A anciã parou um instante. E nessa brevíssima parada trocou os volumes de mão. Aparentemente nada se alterou, pois o peso dos sacos e a sua dificuldade mantiveram-se no limite em que estavam. Nem ela poderia fazer muito mais, se pretendia levar aquela tarefa até o fim. Mas nesse instante as suas mãos deixaram de estar ocupadas, readquiriram leveza, procuraram outros equilíbrios, porventura mais criativos, a que se ajustarem. Na verdade, nada se alterou. Entretanto, para aquela que recomeça o caminho, tudo é diferente.

Como chamaríamos a esse fundamental e urgente instante? Se tivesse de dar-lhe um nome, arriscaria “o instante de trocar de mãos”. É claro que não são as mãos que se trocam. A esquerda não passará a ser direita. Mas gosto dessa espécie de brincadeira (e de sabedoria) para a qual a língua nos puxa. O que se troca é, claramente, o que as mãos seguram. A linguagem, contudo, não descreve o visível de maneira plana, do contrário não o poderia descrever jamais. Quando trocamos o peso que as mãos sustêm na viagem, concedemos às mãos exaustas a possibilidade de reinventar estratégias que lhes permitam persistir, e criamos, assim, a oportunidade para que se reencontrem. As mãos exaustas serão, por isso, as mesmas e também outras. Talvez valorizemos pouco “o instante de trocar de mãos”, mas é graças a ele que a anciã, quando sente que lhe escasseiam as forças, consegue levar para casa aquilo de que precisa.

A onipotência humana é uma ilusão que, com maior ou menor estrondo, acaba por tombar. A bem dizer, não há quem não faça a experiência da vulnerabilidade. Não há quem não sinta, em determinado momento, que a porção ou a forma de existência que lhe coube é demasiado pesada para as forças que tem; que é capaz com facilidade de realizar umas coisas e outras não; que precisa de instantes para se refazer. Mesmo se, constrangidos pela necessidade ou absorvidos pelo prazer, prolongamos desmedidamente as etapas, há um momento em que levantamos a cabeça, colocamo-nos de pé, sacudimos as pernas (ou sentimos vontade disso), propomos uma trégua, uma pausa, por pequena que seja, para respirar novo ar. Parar torna-se uma exigência, se quisermos progredir com a vitalidade necessária.

No belo elogio que dedica à mão, Henri Focillon (**) recorda que há dimensões da vida que só se conhecem assim, aprofundando o significado dos dedos e da concavidade das mãos, reconhecendo a sua fragilidade e firmeza. “Tudo aquilo que pesa, com um peso imperceptível ou com a quente pulsação da vida, o que tem uma casca, um invólucro, uma pele”, é a mão quem conhece melhor. Os olhos deslizam pela superfície do universo, mas nada nos dá mais a medida do real do que o passo e a mão. Há quanto tempo não trocamos de mãos?

(*) Krzysztof Kieślowski (1941-1996), polonês, importante cineasta, dentre outros, criou a série três cores, referência às cores da bandeira francesa e ao lema da revolução francesa: A Liberdade é Azul, com impressionante atuação de Juliette Binoche; A Igualdade é Branca; e A Fraternidade é Vermelha. Aqui neste artigo, José Tolentino Mendonça deve estar se referindo à cena em que uma senhora caminha com dificuldades com suas compras, e ainda tenta jogar uma garrafa vazia em um grande coletor de resíduos na rua, sem conseguir alcançar a altura para isso. A cena enigmática aparece nos três filmes da série. A personagem do último (A Fraternidade é Vermelha, personagem interpretada por Irene Jacob) finalmente a auxilia no intento e joga então a garrafa no coletor. Aqui José Tolentino Mendonça parece referir-se ao primeiro filme da trilogia, A Liberdade é Azul, e ao olhar (ou ausência do olhar) da personagem interpretada por Juliette Binoche.

(**) Henri Focillon (1881-1943), francês, historiador da arte. Sua obra Elogio da Mão a que José Tolentino Mendonça se refere está traduzida para o português, publicada e disponível para download gratuito pela revista Serrote do IMS – Instituto Moreira Salles: <https://www.revistaserrote.com.br/wp-content/uploads/2012/03/elogiodamao_07.pdf>

fonte do texto:
MENDONÇA, José Tolentino. A Mística do instante: o tempo e a promessa. São Paulo: Paulinas. 2016. p. 58-59.
Disponível em <https://www.martinsfontespaulista.com.br/mistica-do-instante–a-805680/p>

fonte das imagens:
Kieślowski, Krzysztof. Cenas do filme “A Liberdade é azul”. 1993.