Sem lentidão não há paladar. Talvez precisemos, por isso, voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rápido possível; os processos nos desgastam, as perguntas nos atrasam, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados. Por conta disso, os ritmos da atividade tornam-se impiedosamente antinaturais. Cada projeto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondo um recuo da esfera privada. Deveríamos, contudo, refletir melhor sobre o que deixamos de saber quando permitimos que a aceleração nos condicione desse modo. Com razão, num magnífico texto intitulado A lentidão(*), Milan Kundera escreve: “Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa alguma, nem de si mesmo”. E explica, em seguida, que o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento. A pressa nos dá, assim, uma impressão de si que é fictícia. Ao contrário do que parece, o seu aliado é o esquecimento, não a memória. Tudo passou no mesmo galope com que entrou.
Uma alternativa será, talvez, resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora, isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressa de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, do gesto cegamente compulsivo, da palavra repetida e banal. Lembro-me de uma história engraçada contada pela pintora Lourdes de Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam, e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato imprimir, ela e o marido, Manuel Zimbro, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. Divergindo dessa forma com o cerco, riam-se, ganhavam tempo e distanciamento crítico, buscavam outros modos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se. Cada um terá de encontrar modalidades mais adequadas da lentidão.
Mesmo se a lentidão perdeu quase todo o estatuto nas nossas sociedades modernas e ocidentais, ela continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora. A lentidão ensaia uma fuga ao quadriculado, ousa transcender sempre que possível o meramente funcional e utilitário; escolhe muitas vezes conviver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, o manuseamento diversificado da luz, as trocas de sabor.
(*) Romance de Milan Kundera, publicado pela Cia das Letras em 2011. Disponível em <https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=80090>
fonte do texto:
MENDONÇA, José Tolentino. A Mística do instante: o tempo e a promessa. São Paulo: Paulinas. 2016. p. 79-80.
Disponível em <https://www.martinsfontespaulista.com.br/mistica-do-instante–a-805680/p>fonte das imagens:
1. CASTRO, Lourdes. Crescem à Sombra. 1991. [tecelagem manual]. Disponível no Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa. <https://gulbenkian.pt/cam/en/news/lourdes-castro-1930-2022/>2. CASTRO, Lourdes. Primavera. 1992. Disponível em Manufactura de Tapeçarias Portalegre <http://www.mtportalegre.pt/pt/artists/view/30/3>