ETTY HILLESUM: UMA ESTRELA NOS CAMPOS

[Para apresentar Etty Hillesum, trago um trecho da revista IHU Online, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, número 534, abr 2019, dedicado a esta jovem, seu pensamento, sua história no meio da guerra, sua trajetória mística do encontro com Deus]

Imagine viver a dor da guerra na própria pele, a qual é rasgada pelo sofrimento que transpassa a todos que são reduzidos a um campo de concentração, mas sem perder a potência da vida e a capacidade de olhar além de todo o mal ao redor e encontrar amor.

Essa é Etty Hillesum, a judia que, depois de viver confinada no campo de Westerbork, na região onde hoje é a Holanda, é transferida de trem, junto com toda a família, para ser morta em Auschwitz, jornada em que muito provavelmente já perde os pais, sobrando apenas ela e o irmão. Nos seus últimos relatos, diz que todos estavam “calmos e fortes” e que teriam “deixado o campo cantando”. Essa cena revela por que Etty Hillesum é considerada uma das místicas mais destacadas de nosso tempo, ou, como descreve Faustino Teixeira, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, “uma das personalidades mais luminosas do século XX”.

De acordo com informações da Cruz Vermelha, Etty morreu em Auschwitz, na Polônia, em 30 de novembro de 1943, aos 29 anos de idade. Nasceu em 25 de janeiro de 1914, em Middelburg, nos Países Baixos, atual Holanda. […] Quando Etty completa 18 anos, os pais a enviam para estudar línguas eslavas em Amsterdã. Ali, gradua-se em Jurisprudência, além de seguir os estudos de línguas e dar aulas de russo, idioma que aprende com a mãe. Descrita por muitos biógrafos e pesquisadores como uma jovem culta, animada, curiosa e inquieta, nunca escondera sua grande capacidade de introspecção. Ela mesma se reconhece assim, como descreve em um de seus diários em 1941:

Quero algo e não sei o quê. Mais uma vez me sinto presa a grande ansiedade e desejo de busca; tudo está em tensão dentro da minha cabeça […] No fundo de mim mesma, sou como uma prisioneira de um novelo de fios e com absoluta clareza nos pensamentos. Às vezes não sou mais que um pobre diabo com medo. […] Às vezes me sinto como uma lata de lixo; sou tão turva, cheia de vaidade, de irresolução, de sentimento de inferioridade. Mas em mim também há honestidade e um desejo apaixonado, quase elementar de clareza e harmonia entre o exterior e o interior

É para conhecer mais o seu interior e atender esses desejos de harmonia que a jovem vai procurar Julius Spier, um judeu alemão refugiado na Holanda, psicoterapeuta, discípulo de Jung e que trabalha com a nova ciência da psicoquirologia, que estuda o comportamento humano a partir da análise das mãos. É ele quem vai motivar Etty a escrever como forma de buscar o seu mundo interior. Sob sua batuta também vai se dedicar à leitura da Bíblia e a escritos de Santo Agostinho, além de Rilke e Dostoiévski. Mais tarde, os dois vão viver um relacionamento amoroso. Ela será sempre grata pelos ensinamentos de seu mentor, a quem denominava como seu “obstetra da alma”. “Você me ensinou a pronunciar com propriedade o nome de Deus. Você tem sido o intermediário entre Deus e eu […] Agora eu serei o intermediário para todos aqueles a quem eu possa chegar”, escreveu ela depois da morte de seu parceiro.

Na mesma medida em que Etty avançava no conhecimento interior, a guerra recrudescia e tornava a vida cada vez mais difícil para os judeus. Nesta altura, a jovem já estabelecera uma relação bem próxima com Deus. Aliás, um Deus que descreve como habitando o seu “eu” interior. E é nesse interior e com apoio desse Deus que vai buscar resistência às atrocidades impostas pelo regime nazista.

Meu Deus, toma-me pela mão, vou segui-lo como uma boa menina, não vou opor muita resistência. Não me afastarei de nenhuma das coisas que me acontecerem nesta vida, tentarei aceitar tudo da melhor maneira. Gosto do aconchego e da segurança, mas não vou me rebelar se for a minha vez de estar no frio, enquanto segurar a minha mão, eu vou a qualquer lugar e tentarei não ter medo. E onde quer que eu esteja, procurarei irradiar um pouco desse amor, desse amor verdadeiro pelos homens que eu carrego dentro de mim […] Uma vez que se começa a caminhar com Deus, simplesmente se continua a caminhar e a vida se transforma em um único e longo passeio.

E assim ela fez. Em julho de 1942 começou a trabalhar como datilógrafa no Conselho Hebraico, um órgão burocrático criado pelos alemães para fazer a mediação com a comunidade judaica. No entanto, ela não se encontrava feliz e seguia sua busca até que, estimulada por outros funcionários do departamento burocrático, decidiu se tornar voluntária no campo de Westerbork. Originalmente criado como um acampamento para refugiados judeus por autoridades locais no verão de 1939, vai se tornar um campo de concentração também em julho de 1942, quando as autoridades alemãs tomam o espaço. Etty chega ao campo em agosto do mesmo ano, depois da dominação germânica. Como esse era um local de refugiados, havia antes escolas e muitos judeus trabalhavam e produziam nesse espaço. Mais tarde, quando todos foram levados para Polônia, havia ainda os que nutriam a esperança de viver como no antigo abrigo.

Quando os nazistas recrudescem sobre os judeus de Westerbork, as autoridades determinam que parte dos servidores do Conselho Hebraico retornem para Amsterdã. Etty decide ficar, pois considerava fundamental cuidar daquelas pessoas feridas e assustadas. Conforme relata em um de seus diários:

Quão grandes são as necessidades de suas criaturas terrestres, Deus meu. Agradeço-lhe porque permite que tantas pessoas venham a mim com suas tristezas: falam tranquilas e sem suspeitas e, de repente, saem todas as suas tristezas e se descobre uma pobre criatura desesperada que não sabe como viver. Então, começam os meus problemas. Não basta pregá-lo, Deus meu, não basta desenterrá-lo dos corações dos outros. É preciso abrir-lhe o caminho, Deus meu, e para fazer isso é preciso ser um grande conhecedor do espírito humano. Meus instrumentos para isso são limitados. Mas já existem, até certo ponto: vou melhorá-los pouco a pouco, com muita paciência.”

E assim ela vai trabalhando junto a essas pessoas dilaceradas pela guerra. Mas a escuta exercida por Etty Hillesum não é apenas no sentido de confortar os sofridos. Ela se nega a entregar suas forças ao ódio que se espalha como rastilho de pólvora e vê na alegria e na punção de vida a maior de todas as formas de resistência, como é possível perceber em sua anotação:

A ausência de ódio não significa, por si só, a ausência de um desdém moral elementar. Eu sei que quem odeia tem boas razões para isso. Mas por que devemos sempre escolher o caminho mais barato? Lá [em Westerbork] eu pude tocar com a mão como cada átomo de ódio que se soma ao mundo torna-o mais inóspito. E creio que, talvez ingênua, mas teimosamente, esta terra poderia ser um pouco mais habitável, graças ao amor sobre o qual o judeu Paulo escreveu aos habitantes de Corinto”.

O professor Faustino Teixeira recorda que, dentre os confinados no campo de Westerbork, “Etty era reconhecida como o ‘coração pensante’, a ‘personalidade luminosa’”. “Foi um testemunho de fé, esperança e amor entre aqueles deserdados. O seu trabalho essencial foi o de erigir uma ‘barreira interior’ para evitar que a apatia ou o desânimo tomassem conta de seus companheiros”, aponta. Para Faustino, a voz de Etty Hillesum se erguia “das sombras como brasa nas cinzas e reinventava a esperança”.

fonte do texto:
SANTOS, João Vitor. Etty Hillesum, a voz que se ergue das sombras como brasa e reinventa a esperança. IHU Online, São Leopoldo, RS, ano XIX, nr. 534, p.13-15, 15/04/2019. [Disponível em: <https://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao534.pdf>]

Trechos dos escritos de Etty Hillesum:

Desenterrar Deus no coração dos atormentados, resguardando neles o sentido da própria dignidade”.

Dá-me um pequeno verso por dia, meu Deus. E se eu nem sempre o puder copiar por não haver papel ou luz, então hei-de declamá-lo baixinho para o teu grande céu, à noite, mas dá-me um pequeno verso de vez em quando”.

Esta tarde dei comigo de repente ajoelhada no tapete castanho de coco da casa de banho, com a minha cabeça escondida no meu roupão, pendurado na cadeira de vime partida. Ajoelhar não me é nada fácil, sinto uma espécie de embaraço. Porquê? Provavelmente por causa da fração crítica, racional e ateia que é também parte de mim. E no entanto são tantas as vezes em que sinto a grande urgência de me ajoelhar, com o rosto por entre as mãos, e deste modo encontrar alguma paz e escutar a fonte escondida dentro de mim”.

“Quando eu ponho estas coisas por escrito, ainda sinto uma certa vergonha, como se estivesse a escrever acerca das mais íntimas das questões. Muito mais acanhada do que se tivesse de escrever acerca da minha vida amorosa. Mas haverá de fato alguma coisa tão íntima como a relação do ser humano com Deus?

“Ontem à noite, pouco antes de me ir deitar, dei por mim de repente ajoelhada no meio desta grande sala, entre as cadeiras de metal e o tapete. Quase automaticamente. Puxada para o chão por algo mais forte do que eu. Há algum tempo disse para mim mesma: ‘Sou uma aprendiz da arte de ajoelhar’”

“Quando hoje caminhava pelos corredores a abarrotar, senti de repente uma enorme necessidade de me ajoelhar ali, no chão de pedra, no meio de toda a gente. O único gesto de dignidade humana que ainda nos resta neste tempo: ajoelhar-nos diante de Ti”.

Continuar a amar, a estar à escuta de si mesma, dos outros, da lógica desta vida e de Ti. Hineinhorchen: Escutar interiormente; bem que eu gostaria de encontrar uma boa expressão em holandês para dizer isso. Na realidade, a minha vida é uma perpétua escuta interior de mim mesma, dos outros, de Deus. E quando digo que escuto interiormente, na realidade é mais Deus que, em mim, está à escuta. O que há de mais essencial e de mais profundo em mim é a escuta e a profundidade do outro. Deus escuta Deus”.

UMA ESTRELA NOS CAMPOS
Mariana Ianelli

Trabalhava. Trabalhava numa primavera fria
esperando ser como a lua, ser como um pasto:
uma vasta paisagem tranquila –
e desenterrava Deus de sob pedras e cascalhos.
O caminho até o cais era feito entre soldados
(todos tão pequenos por trás de seus crimes).
E trabalhava mais: era uma estaca no mar,
era um pedaço de granito, era o próprio mundo
prestes a ser destruído. E trabalhava mais:
estava com os deportados, com os desaparecidos,
estava com uma flor num retângulo de jardim.
De minuto a minuto, forjando a calma em pessoa,
o sorriso de Buda, um terreno baldio.
E já havia partido, muito antes de partir, debaixo
de um céu sem palavras: era uma estrela nos campos,
era a mulher já sem nome do vagão número 12,
na direção do Leste, cantando de alegria.

(Do livro Tempo de voltar, Edições Ardotempo, 2016)

 

fonte das imagens:
CONDADO, Filipe. Nos passos de Etty. Disponíveis em <https://www.filipecondado.com/portfolio_page/nos-passos-de-etty-hillesum/>
Wiki Commons. Media in category “Etty Hillesum”. Disponíveis em <https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Etty_Hillesum>
EHOC. Centro de Pesquisa Etty Hillesum. Disponíveis em <https://ehoc.nl/>