AFIRMAR COMPASSIVAMENTE

Na publicação anterior reproduzi um trecho do livro “Doze passos para uma vida de compaixão” (referência completa ao fim desta página), da Karen Armstrong, importante historiadora da religião, grande pensadora partilhando conosco seu olhar e sabedoria diante de tantos desafios que vivenciamos nos dias de hoje, e também das alegrias que nos animam (não esqueçamos!). Mas ao trazer novamente o tema da compaixão aqui para o “continuamente” eu mesmo me deparo com dúvidas que quase me fazem associar a compaixão com desafio ainda maior e mais intransponível dos que vivenciamos nesses estranhos tempos. Meu Deus, como posso ter compaixão? Mostre-me o caminho se é que existe um… E posso dizer não apenas eu indago, alguns amigos me retornaram indicando que a compaixão parece cada vez mais distante.

Facinho a gente cai nessas armadilhas mentais do autoengano. Pois bem, ocorre que insisto em pegar outro caminho. E ao invés de me demorar nos apegados lamentos do eu, compreender que sim, a compaixão me desafia, melhor, mais que desafia, me convoca a olhar sempre um pouco mais internamente o tanto ainda a transformar no meu processo de individuação, e traçar um novo mapa de minhas profundas distâncias até o Ser Eu Sou. Há ainda muito a caminhar. Parafraseando outro autor que publiquei aqui: “a demanda continua… essa espécie de desejo de ir além”.

Reproduzo então outro trecho do livro de Karen Armstrong para ajudar a desenhar esse mapa do caminho da compreensão correta.

Evidentemente há ocasiões em que temos de ser taxativos. Mesmo quando passamos por esse processo e entendemos o contexto em que um terrorista concebeu sua ideia, não podemos, se tomamos como critério a Regra de Ouro, aceitar o que ele decidiu fazer. Contudo, alargamos nossos horizontes ao reunir informações para entender sua possível frustração, sua humilhação e seu desespero, e agora temos condições de compreender também a difícil situação de muitos de seus compatriotas ou correligionários inocentes, que talvez sintam algo parecido, porém não recorreram à vingança criminosa. Mas ainda precisamos nos dissociar da atrocidade terrorista. Adotar o “princípio da caridade” não significa que devemos ficar passivos e inertes em face da injustiça, da crueldade e da discriminação. Enquanto desenvolvemos nossa mente compassiva, devemos nos sentir responsáveis pelo sofrimento dos outros e tomar a resolução de fazer o possível para libertá-los de seu infortúnio. Mas responder à injustiça com ódio e desprezo não só não resolve nada, como intensifica o antagonismo e piora as coisas. Antes de defender valores decentes, é bom certificar-nos de que entendemos todo o contexto e não descartamos os valores de nossos opositores como bárbaros, simplesmente porque nos parecem estranhos. Podemos descobrir que temos os mesmos valores, mas os expressamos de modo muito diferente.

Como afirmar compassivamente uma firme convicção? São Paulo nos dá boas sugestões na famosa descrição do amor que citei anteriormente. A caridade é “paciente e benévola”; “nunca se vangloria, nunca se ensoberbece, nunca é rude”; nunca é invejosa, nem “se ofende facilmente”. A caridade “não mantém um registro de erros” e “não se compraz com os pecados alheios”. Se nos ofendemos facilmente e exultamos com os pecados alheios, não passamos nesse teste. Se falamos com impaciência, com grosseria ou com maldade, corremos o risco de baixar ao nível de intolerância que condenamos. Uma tradução mais antiga de “nunca se vangloria, nunca se ensoberbece” é “a caridade […] não é cheia de si”. Nossa crítica não deve nos inflar o ego. Há pessoas que, ao criticar um abuso ou um crime, parecem inchar diante de nossos olhos, como se estivessem quase explodindo de satisfação com elas mesmas.

Gandhi nos deixou um belo exemplo de firmeza e compaixão: ao advogar a resistência não violenta, geralmente pedia às pessoas que verificassem se lutavam para mudar as coisas ou para punir. Achava que, quando recomendou a seus seguidores que oferecessem a outra face, Jesus estava exortando-os a mostrar coragem diante da hostilidade. Essa era a maneira de transformar ódio e desprezo em respeito. Mas não violência não significava submissão à injustiça: Gandhi dizia que seus opositores podiam ter seu cadáver, porém não sua obediência.

Neste passo, tentamos perceber como falamos com os outros. Quando discute, você fica empolgado com sua habilidade e deliberadamente ofende seu opositor? Você parte para o ataque pessoal? Os pontos que você obtém contribuem para o entendimento ou agravam ainda mais uma situação delicada? Você realmente escuta seu opositor? O que aconteceria se — discutindo um assunto trivial, sem graves consequências — você se deixasse derrotar? Depois de uma discussão acirrada, examine sua participação: você realmente pode sustentar tudo que disse no calor do momento? Você realmente sabia do que estava falando ou falava por “ouvir dizer”? E, antes de entrar numa discussão ou num debate, pergunte a si mesmo, honestamente, se está disposto a mudar de ideia.

fonte do texto:
ARMSTRONG, Karen. Doze passos para uma vida de compaixão. São Paulo: Paralela, 2012. p.109-110.
Disponível em <https://www.estantevirtual.com.br/livros/karen-armstrong/12-passos-para-uma-vida-de-compaixao>