OLHE PARA SEU PRÓPRIO MUNDO

Karen Armstrong, importante historiadora da religião, ao receber o prêmio TED em fevereiro de 2008 (veja ao final desta página o vídeo de sua palestra na ocasião) revelou seu desejo de que a ajudassem a criar, lançar e divulgar uma Carta pela Compaixão, redigida por grupos de pensadores das tradições religiosas, com base no princípio fundamental da Regra de Ouro. Cito a própria Karen para elucidar o que é a Regra de Ouro:

Todas as religiões afirmam que a compaixão constitui o teste da verdadeira espiritualidade e nos coloca em contato com a transcendência que chamamos de Deus, Brahman, Nirvana ou Tao. Cada uma delas possui sua própria versão do que às vezes chamam de Regra de Ouro: “Não trate os outros como você não gostaria de ser tratado” — ou, na forma positiva: “Sempre trate os outros como você gostaria de ser tratado”. Todas frisam que não podemos restringir a benevolência a nosso próprio grupo: nossa preocupação deve estender-se a todos — até mesmo aos inimigos.

A Carta pela Compaixão obteve contribuição de milhares de pessoas e foi apresentada a um conselho de indivíduos notáveis de seis tradições religiosas: judaísmo, cristianismo, islamismo, hinduísmo, budismo e confucionismo, que reunidos na Suíça em 2009 redigiram seu texto final, então lançada em novembro de 2009. A Carta pode ser lida aqui em nosso site (acesse o texto da Carta, leia, divulgue…).

Além de organizadora da iniciativa da Carta pela Compaixão, Karen lança em 2011 o belo e emocionante livro “Doze passos para uma vida de compaixão” (referência da publicação em português no fim desta página), como que um roteiro da trilha compassiva, um chamamento para um mundo melhor. Deste livro separei o trecho do segundo passo “olhe para seu próprio mundo”. Imprescindível para os nossos dias de hoje, se me permitem a sugestão. Negritei algumas frases para melhor memorizar.

Boa leitura!

SEGUNDO PASSO: OLHE PARA SEU PRÓPRIO MUNDO

[As ideias de alguns dos grandes luminares do passado os levaram a adaptar] os achados das tradições religiosas primordiais, que sempre entenderam o valor da compaixão, às exigências de um mundo drasticamente modificado — uma sociedade urbanizada, grandes Estados em processo de industrialização, violência crescente e uma agressiva economia comercial. Não achavam que a religião os prendia ao passado, mas estavam dispostos a realizar mudanças fundamentais nas tradições que herdaram: basta pensar em Buda procurando um guru após outro em sua busca de iluminação antes de seguir seu próprio caminho. Também temos o exemplo dos rabinos, que chegavam a alterar o texto bíblico para adequá-lo aos problemas da comunidade. Por fim, devemos considerar o heroísmo de Maomé, cujo plano de criar uma comunidade baseada numa ideologia comum e não nos sagrados laços de sangue representou uma ruptura radical com o passado. Para tentar construir um mundo mais compassivo também precisamos adotar outro modo de pensar, reconsiderar as principais categorias de nossa época e encontrar novas maneiras de enfrentar os desafios atuais.

Mas para dar conta dessa tarefa precisamos da orientação de gente como Buda ou Confúcio, porque eles são especialistas. No Ocidente, realizamos grandes façanhas no campo da ciência e da tecnologia e temos poucos gênios espirituais. Nossa abordagem científica do mundo exterior tem sido altamente proveitosa para a humanidade, porém somos menos competentes na investigação da vida interior. No plano espiritual, não conseguimos ir além dos paradigmáticos achados dos sábios antigos. Mas também vimos que muitos desses mestres e profetas essenciais viveram em sociedades que tinham problemas semelhantes aos nossos: uma violência que parecia fugir ao controle e uma economia que marginalizava os pobres. Todos se angustiavam com o sofrimento onipresente. Agora está na hora de aplicar o que aprendemos com eles a nossas circunstâncias e a nossa sociedade.

Joseph Campbell mostrou que cada cultura desenvolveu um mito do herói, um ser humano excepcional que se sacrificou para transformar a vida de seu povo. A narrativa sempre segue a mesma forma básica para expressar uma ideia universal. Em todas essas histórias, o herói começa observando sua sociedade e constatando que falta alguma coisa. Talvez haja um mal-estar espiritual; talvez as ideias tradicionais já não signifiquem nada para os contemporâneos; talvez eles estejam enfrentando um perigo incomum. Como não encontra uma solução pronta, o herói resolve partir, abrir mão da segurança de tudo que lhe é familiar e procurar outra resposta. Sua busca é heroica porque exige sacrifício: envolve dor, rejeição, isolamento, perigo e até a morte. Porém ele está decidido a empreender essa viagem por amor a seu povo — um amor que não consiste em declarações grandiloquentes, mas em altruísmo expresso na prática. O propósito desse mito é nos ajudar a liberar nosso potencial heroico, mostrar o que precisamos fazer, se queremos construir um mundo melhor, e ensinar-nos a melhor maneira de enfrentar os desafios de nossa época.

Muitas biografias dos grandes líderes religiosos seguem essa fórmula. Buda teve de deixar o conforto do lar, abandonar os pais chorosos, raspar a cabeça e vestir o manto amarelo do asceta que renuncia ao mundo quando partiu em busca da cura para o sofrimento da humanidade. No início de sua trajetória, Jesus foi “conduzido pelo Espírito” ao deserto, um lugar de transformação no contexto bíblico, mas também um antro de demônios: foi levado ao pináculo do templo e ao topo da montanha para ver o mundo de cima e rejeitou o atrativo de um caminho mais fácil e mais óbvio. Muito antes de receber as revelações, Maomé anualmente se retirava para o monte Hira, nos arredores de Meca, onde jejuava, fazia exercícios espirituais e dava esmolas aos pobres, enquanto meditava sobre o mal-estar que afligia sua tribo e tentava encontrar um remédio. Muitos heróis mais recentes da compaixão passaram pelo mesmo processo. Quando decidiu voltar para a Índia, Gandhi deixou para trás as elites urbanas da África do Sul, onde morava, e percorreu todo o país, observando atentamente a dura situação das pessoas comuns antes de elaborar um plano de ação.

Assim, neste passo, devemos nos conduzir mentalmente ao cume da montanha, de onde podemos ver as coisas de outro ponto de vista. Enquanto realiza esse exercício, talvez seja interessante você pensar em termos dos círculos concêntricos de compaixão de Confúcio, começando por sua família, passando para seus amigos e sua comunidade e, por fim, abarcando o país em que vive. Muitas das coisas que sempre fizeram parte de nossa vida — nossas instituições financeiras e nossa política, tanto interna quanto externa — de repente nos parecem inadequadas. Não conseguimos resolver os enormes problemas da fome e da pobreza; sabemos que nossas políticas ambientais são insustentáveis e, contudo, não nos ocorre nenhuma medida viável. Olhamos em torno e constatamos que é preciso fazer alguma coisa, mas não atinamos com a solução. Não devemos abordar nossa tarefa com o rigor de um reformador; não devemos deixar espaço para a raiva, a frustração ou a impaciência. Devemos olhar para nossa comunidade com compaixão, avaliar sua força, sua fraqueza e seu potencial para mudanças.

Vamos começar pela família. Como diz o velho ditado, é verdade que a caridade começa em casa. Como os confucionistas nos ensinam, a família é uma escola de compaixão, porque é nela que aprendemos a conviver com os outros. A vida em família envolve sacrifício, porque diariamente temos de passar por cima de nossos interesses para atender às necessidades dos outros; quase todo dia temos de perdoar alguma coisa. Ao invés de nos irritar com isso, vamos tentar ver essas tensões como oportunidades para crescer e mudar. Pergunte a si mesmo o que você realmente sente por sua família. O que ela tem que para você é motivo de orgulho e felicidade? Faça uma lista das formas de atenção que ela lhe dispensa. Escreva uma carta para ela, relatando sua história como família e expressando suas esperanças e seus temores em relação a cada uma das pessoas que a compõem. Existe alguma “ovelha negra” em sua família? Como se criou essa situação? É possível corrigir isso? Como você reage a discussões e desavenças? Quais são seus pontos fortes no convívio com a família?

Os confucionistas acreditavam na importância do ritual na vida em família. Na antiga China, cada membro da família tinha de subordinar suas necessidades a outro membro: o primogênito aos pais, a mulher ao marido e o caçula ao irmão mais velho. O sistema foi concebido para que houvesse uma troca de reverência e todos fossem tratados com respeito. O primogênito, por exemplo, provavelmente também se tornaria pai e seria servido pelo filho da mesma forma como servia seu pai. Quem tinha um irmão mais velho e um mais novo era objeto dos rituais de consideração, ao mesmo tempo que também os executava. Os li exigiam que o filho se submetesse incondicionalmente aos desejos do pai, mas o pai devia ser justo, bondoso e gentil com a prole. A vida em família era como os balés rituais meticulosamente coreografados: uma série de danças nas quais cada participante tinha um par e contribuía para a beleza do conjunto. Os li incutiam empatia em todos os membros da família: quando o pai morria, por exemplo, o primogênito saía de casa e jejuava, para vivenciar a fraqueza crescente do pai em seus últimos tempos, quando estava suspenso entre a vida e a morte.

Nada disso se aplica aos dias de hoje, evidentemente. No Ocidente, valorizamos a independência dos jovens, esperamos que expressem suas opiniões e não exigimos obediência absoluta. Mas estamos tratando os velhos da família com empatia, amor e respeito? Eles morrem cercados de cuidados ou abandonados numa casa de repouso ou num hospital? Se estão em sua própria casa, são tratados com fria consideração e vistos como um fardo? Algumas pessoas carregam um peso maior de responsabilidade por eles? Ao invés de fazer da refeição dos pais uma cerimônia elegante, muitos filhos simplesmente jogavam a comida na mesa, e Confúcio se enfurecia com isso. “Até os cães e os cavalos recebem tais cuidados!”, exclamou certa vez. “Piedade filial não consiste apenas em assumir o trabalho pesado quando alguma coisa tem de ser feita”, alertou; “é algo mais que isso.” Esse vago “algo mais” era a “postura”: o espírito com que o filho realizava esses ritos de serviço se revelaria em cada um de seus gestos e em cada uma de suas expressões faciais. Cuidar dos velhos será um grande problema nos países ocidentais que abrigam uma crescente população idosa. Será que Confúcio pode nos ensinar alguma coisa que nos ajude a cuidar dos velhos com compaixão?

Você vê no século XXI algum equivalente dos li que faça cada membro da família sentir-se extremamente valorizado? Como você pode transformar sua família numa escola de compaixão, onde as crianças aprendam a importância de tratar todos com respeito? Como seria a vida se cada membro da família tentasse realmente tratar os outros, “diariamente, o dia inteiro”, como gostaria de ser tratado? A vida seria melhor se, por exemplo, todos se esforçassem para não falar impensadamente? Sabemos que pessoas que cresceram em famílias desestruturadas têm dificuldade para estabelecer bons relacionamentos; podem ter problemas psicológicos que as levem a aumentar o sofrimento do mundo. Criando uma vida em família de compaixão, todos nós podemos contribuir para uma sociedade mais empática no futuro.

Passemos agora ao local de trabalho. Como um advogado, um empresário, um pedreiro, um médico, um educador, um sacerdote, um policial, um guarda de trânsito, uma enfermeira, uma balconista, uma bibliotecária, um cozinheiro, um taxista, uma recepcionista, um escritor, uma secretária, uma faxineira ou um bancário pode observar a Regra de Ouro no exercício de sua função? Quais seriam os critérios realistas de uma empresa compassiva? Se você e seus colegas de profissão tentassem realmente ser mais compassivos, que impacto produziriam em seu ambiente imediato e na comunidade global? A que colega seu você daria um prêmio pelo cumprimento da Regra de Ouro? Em nossa sociedade moderna, estamos interessados em atingir metas e muitas vezes buscamos eficiência ao invés de compaixão. Tratamos nossos colegas e subalternos como peças de uma engrenagem, obrigando-os a maximizar a produtividade às custas de sua saúde física, mental e espiritual? A necessidade de criar uma “vantagem competitiva” endossa e agrava o impulso de “primeiro eu” que nos torna insensíveis em outros setores da vida? O impulso de aquisição do cérebro reptiliano evoluiu em função da escassez, não da abundância. Achamos difícil dizer “basta”?

Por fim, consideremos nosso país. Comece por perguntar a si mesmo do que você mais gosta em seu país. O que ele fez pelo mundo no passado e o que pode fazer para tornar o mundo mais justo, seguro e pacífico? Quase todos nós acreditamos que nosso país é compassivo, mas você consegue imaginar como seria se ele se tornasse mais compassivo? Que impacto causaria na comunidade global? Quais seriam os requisitos mínimos para um Estado moderno compassivo? E como um político moderno poderia seguir a Regra de Ouro em sua política interna e externa?

Na esfera da política, Confúcio explica, se procuramos nos estabelecer, devemos também tentar estabelecer os outros; se desejamos status e sucesso para nós, devemos criar condições para que os outros também os conquistem; se queremos que nossos méritos sejam proveitosos, devemos cuidar para que os outros tenham a mesma oportunidade. Seu país já oprimiu ou até mesmo destruiu outros povos no passado ou no presente? Que grau de compaixão existe em seus sistemas penais, sociais e de saúde? Suas instituições financeiras pecam pela ganância? Como seu país trata os imigrantes e as minorias étnicas? Existe grande desigualdade entre ricos e pobres? O tribalismo está presente em sua sociedade? Há sinais de territorialismo agressivo, hostilidade para com os rivais, desprezo por estrangeiros? Há uma compulsão para acatar e seguir líderes indiscriminadamente?

É crucial incutir nas crianças o éthos da compaixão. Em seu país elas são incentivadas a tratar com respeito os amigos, os professores e os estrangeiros? O que os livros escolares lhes ensinam sobre outras raças e outros povos? Os estudantes recebem informações suficientes sobre a história do país para compreender suas falhas e seus triunfos? Nas escolas há problemas com bebida, droga, violência e bullying? Analise essas perguntas e, se você é um educador, procure elaborar um currículo para mostrar às crianças a importância da empatia e do respeito. Se você trabalha com tecnologia, talvez possa criar um jogo eletrônico que acostume as crianças a colocar-se no lugar de uma vítima de bullying, de um sem-teto, um refugiado, um imigrante, uma família pobre, uma pessoa com deficiência física ou mental, um indivíduo segregado por causa de sua raça.

Se você criou um grupo de discussão, talvez seja interessante discutir com ele algumas dessas questões. Ninguém consegue lidar sozinho com esses problemas. Neste passo, pergunte a si mesmo qual pode ser sua contribuição e em que área você deve concentrar seus esforços — negócios, medicina, comunicações, educação, arte, política ou família. Não se intimide com a imensidão da tarefa, porque é possível mudar atitudes. Na década de 1960, ativistas dos direitos civis e feministas transformaram nossa maneira de falar e pensar em raça e gênero. Adote o otimismo de Xunzi: toda pessoa pode se tornar uma força do bem no mundo.

fonte do texto:
ARMSTRONG, Karen. Doze passos para uma vida de compaixão. São Paulo: Paralela, 2012. p.53-59.
Disponível em <https://www.estantevirtual.com.br/livros/karen-armstrong/12-passos-para-uma-vida-de-compaixao>