BUSCAR, ENCONTRAR, SURPREENDER-SE …

[nota: O Evangelho de Tomé (séc I d.C) é um dos manuscritos descobertos em 1945 nas grutas de Nag-Hammadi (Alto Egito) com outros textos em língua copta, prováveis cópias de originais em grego. O Evangelho de Tomé é uma coleção de 114 ditos (logia) de Jesus. Aqui publicamos dois desses ditos (logion 2 e logion 50) traduzidos e comentados por Jean-Yves Leloup (versão em português de Karin Andrea de Guise, trecho do livro “O Sentar e o Caminhar”).]

Ir bem” é buscar e é encontrar, buscar novamente e ficar ainda mais surpreso, deslumbrar-se que tudo esteja aqui e que tudo ainda precise ser descoberto. Não há nenhum lugar onde ir, aquilo que buscamos nós o somos, mas aquilo que somos é o prazer de buscar, uma oração, um louvor chamado desejo…

LOGION 2
Jesus disse:
Aquele que busca,
esteja sempre em busca
até que encontre;
e quando tiver encontrado,
ele ficará perturbado;
sentindo-se perturbado,
ele se deslumbrará,
e reinará sobre o Todo.
(Cf. Mt 7,7-8; Lc 11,9-10)

Este logion descreve as principais etapas da gnose e constitui um verdadeiro itinerário iniciático.

A primeira etapa é a busca; a segunda é a descoberta (encontrar); a terceira é a perturbação que esta descoberta produz; a quarta é a surpresa, o deslumbramento; a quinta é o reino, a presença do Todo.

O manuscrito de Oxyrhinchus (654, n.1), Clemente de Alexandria (Stromates II) e o Evangelho de Felipe indicam com precisão a etapa derradeira desse itinerário, em ligação com o reinado sobre tudo: o grande Repouso.

Convém dizer algumas palavras sobre cada uma dessas etapas.

1. BUSCAR

Que aquele que procura esteja sempre em busca: a verdade esconde-se para ser encontrada. Deus, como diz o profeta, é um “Deus oculto” que nos convida ao “grande Jogo”, a continuar em busca.

Um velho rabino tentava fazer seu neto compreender isso: “Quando você brinca de esconde-esconde com um amigo, imagine sua expectativa e seu sofrimento se ele se esconde e você para de procurá-lo!”

Deus se esconde e nós não o buscamos mais, nós nos colocamos fora do jogo divino. Nossa vida, no entanto, só tem sentido quando estamos dentro deste jogo, desta busca. Não é a história de Israel uma história de esconde-esconde de um povo com o seu Deus?

O primeiro passo no caminho da iniciação é, portanto, reencontrar o desejo de jogar, o sabor da busca, da procura, fazer de si mesmo, de si mesma, um buscador, uma buscadora e, quando tivermos encontrado, permanecer sempre em busca para descobrir incessantemente novas profundidades naquilo que foi descoberto.

2. ENCONTRAR

Procurar, de certa forma, é já ter encontrado. Desejamos algo que já conhecemos; senão de onde nos viria esta ideia? Todos nós já conhecemos “momentos cintilantes” na nossa existência que dão testemunho, qualquer que seja a densidade da nossa noite, de que a luz existe.

“Não me procuraria se já não tivesse me encontrado”.

Assim, o próprio movimento da busca é abrir-se mais àquilo que já está presente, mas que não conhecemos o suficiente: “Existe no meio de vós alguém que vós não reconheceis”, dizia João Batista aos discípulos. Existe no meio de vós uma Presença a ser reconhecida e afirmada. Buscar-encontrar é abrir-se ainda mais Àquilo que – desde sempre – nos é dado.

3. FICAR PERTURBADO, IMPRESSIONADO.

Esse reconhecimento do Ser nos perturba, nos transtorna, nos impressiona e mexe conosco. O despertar a esta outra dimensão coloca em questão nossa visão ordinária ou normose do mundo. Quando, através da física quântica, descobrimos que um objeto está ao mesmo tempo presente e ausente, que ele é onda e partícula, a inteligência fica perturbada, sua lógica e coerência ordinárias não são mais suficientes para explicar o fenômeno.

A experiência do Ser coloca em questão nossa visão do real condicionada pelo instrumento conceitual através do qual pensamos compreendê-lo. Essa relativização de nossos modos de conhecimento habituais não acontece sem que haja perturbação, sem que fiquemos impressionados e transtornados e, no entanto, se aceitarmos isso como uma etapa no processo evolutivo de nossa consciência, seremos pouco a pouco conduzidos ao deslumbramento.

4. DESLUMBRAR-SE, FICAR MARAVILHADO

No século IV, o bispo Gregório de Nissa já dizia que “os conceitos criam os ídolos de Deus, mas apenas o deslumbramento pode nos dizer algo a respeito”. Filósofos como Platão e Aristóteles viam no assombro e no deslumbramento o início da Sabedoria. Einstein, mais próximo de nós, dirá “Apenas os imbecis não ficam maravilhados” (os imbecis: aqueles que acreditam saber e que param na sua busca).

Quanto mais descobrimos, mais nos maravilhamos e nos deslumbramos. Para Einstein, o maravilhoso não é o deslumbrante, é o fato de que o mundo seja compreensível durante alguns momentos, que haja nele essa possibilidade de um acordo, de uma ressonância entre nossa inteligência, nossos sentimentos e o Cosmos, como se eles fossem animados por uma mesma consciência. Tendo experimentado isto, entramos, então, no mistério daquilo que reina sobre o Todo.

5. REINAR SOBRE O TODO

Não nos percebemos mais separados do mundo, mas como um dos lugares possíveis onde o universo toma consciência de si mesmo. Fazemos apenas um com aquilo que reina sobre o Todo. É o mesmo Espírito, o mesmo Sopro, a mesma Energia que me atravessa e que faz vibrar as montanhas (“elas saltam como cordeiros”, dizia o salmista; um físico contemporâneo não diria o contrário). A inteligência que pensa em mim também faz florescer os campos e cantar os pássaros. A vida que corre nas veias da criança não é estranha à seiva que faz crescer as árvores…

Eu não me percebo mais como uma uma expressão particular dentre outras deste Todo que é Um, e é na interconexão vivida de todas as coisas que conheço a imensidão e o repouso.

6. REPOUSAR

O tema do Shabbat é importante para os judeus. Após os momentos de trabalho, do fazer e do ter, é preciso nos darmos o tempo para sermos: sentar-se diante de Deus, simplesmente Ser.

O tema do repouso é igualmente importante para os gnósticos. A inteligência e o coração, unificados nesta consciência que anima todas as coisas, podem se repousar. Aquilo que antes aparecia como contraditório ou oposto revela-se, de agora em diante, como complementar; existe passagem além da dualidade. Descobrimos os reflexos múltiplos, em todos os poços do mundo, de uma lua única.

Essa não dualidade vivida é a paz, o repouso, objetivo incessantemente buscado em todas as etapas deste caminhar iniciático no qual devemos nos manter em busca sem medo de ficarmos perturbados e maravilhados, fazer deste assombro e deste repouso nossa morada.

LOGION 50
Jesus dizia:
se lhe perguntarem: De onde és?
Responde:
Nascemos da Luz,
Ali onde a Luz nasce dela mesma
Ela mantém-se ereta
E revela-se na sua imagem.
Se lhe perguntarem: Quem és tu?
Responde:
Nós somos seus filhos
E nós somos os bem-amados do Pai,
o Vivente.
Se o interrogarem:
Qual é o sinal do vosso pai que está em vós?
Dize-lhes:
É um movimento e um repouso.
(Cf. Mt21,3; Lc 17,10; Jo 3,8; 8,14; Lc 16,8; Jo 12,36; Ef 5,8; 1Ts 5,5; Rm 9,26; Lc 21,7)

A gnose é uma experiência de luz, é isso que revela o monge Serafim ao filósofo Motovilov quando este vai visitá-lo no seu eremitério. Não é um discurso sobre a luz, é uma participação no seu brilho incriado.

Para Gregório Palamas e os monges do monte Athos, o objetivo da vida cristã é esta experiência da luz incriada, aquela que brilha na sarça ardente, no monte Tabor e no dia da Ressurreição; “Ela mantém-se ereta”, de pé como uma manhã de Páscoa. “A luz que brilha, além do céu, além de tudo, nos mundos mais elevados, além dos quais não existe nada mais elevado, é, na verdade, a mesma luz que brilha no interior do ser humano”, diz a Chandogya Upanishad.

Assim, à tríplice questão: “De onde viemos, quem somos, para onde vamos?”, respondemos sem hesitação: “Eu venho da Luz, eu sou Luz, eu voltarei à Luz”. É a própria verdade do Filho vivente em nós, é a Realidade que permanece no meio da vestimenta mutante das aparências.

O sinal do nosso vínculo com esta Realidade luminosa “é um movimento e um repouso”, é a unificação dos contrários, a unidade da ação e da contemplação, a tranquilidade nos atos e o repouso eficaz.

fonte do texto:
LELOUP, Jean-Yves. O sentar e o caminhar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p.104-111.

fonte da imagem:
BIBLIOTECA COPTA DE NAG-HAMMADI. Imagens de reprodução de páginas do Códice II, correspondentes ao Evangelho de Tomé, parte dos manuscritos encontrados em Nag-Hammadi, 1945. Disponível em <https://www.naghammadi.org/> e <http://www.gospel-thomas.net/x_facs.htm>

SÃO TOMÉ. Ícone. Disponível em <https://www.traditions-monastiques.com/3492-large_default/icon-saint-thomas-apostle.jpg>