Verão de 1926. Uma vivência da juventude do dramaturgo Eugéne Ionesco. De manhã cedo ele caminha pelos becos de uma pequena cidade provinciana. O sol brilha quente e claro. E então, aquilo acontece.
De repente a luz ficou ofuscante, branca, muito mais brilhante do que o sol. A roupa que ficara para secar no quintal, a pobre roupa de cama de repente parecia sobrenatural. O mundo me pareceu transformado, tão fortemente, que fui tomado por uma alegria incontrolável. E sobretudo senti aquela presença, que me fez dizer: o que quer que me aconteça, agora eu sei. E nunca esquecerei este momento. Consequentemente nunca mais ficarei totalmente desesperado. Nem posso dizer como foi, pois é realmente inenarrável. Ao mesmo tempo ocorreu uma transformação na aparência da própria cidade, do mundo, das pessoas. O céu me pareceu muito mais próximo, quase ao alcance das mãos. Não posso dizer nada além de intensidade, presença, luz.
Mais tarde Ionesco desmereceu a importância dessa vivência para a sua vida posterior. Apesar da imensa intensidade do que vivenciou, ele renunciou ao céu, assim como o céu também o deixara cair. Como substituto do céu perdido, ele se jogou, segundo suas próprias palavras, com muita ânsia e voracidade na vida, sabendo que seus desejos não conseguiriam preencher a lacuna. Evidentemente as experiências místicas não se conservam, elas podem esmaecer. A iluminação não é duradoura.
Mas será que aquilo que Ionesco vivenciou naquele dia de verão na cidade da província é mesmo realidade? Ou imaginação? Sonho? Projeção? Desejo?
A pergunta fica em aberto. Não existe uma resposta evidente, porque toda resposta dependerá sempre da própria maneira de ver as coisas. Como eu vejo a vida, o mundo, o universo? Como eu interpreto o que percebo? Será que eu considero real apenas o que posso pegar, entender e explicar? Ou eu considero possível existir algo mais dificilmente explicável, que pode sempre surgir direta e inesperadamente em algum lugar e algum momento?
Tudo isso continua sendo um a decisão totalmente pessoal. Eu acredito que existe um sentido, uma relação que abrange tudo, um grande sim? Ou eu acredito que tudo é acaso, sem sentido, sem significado? De um jeito ou de outro, é uma questão de crença. Qualquer que seja a resposta, ela não poderá ser provada através de nada.
Não sei exatamente quando e por que eu me decidi pela primeira possibilidade, a crença num todo superior, significativo. Mas eu parto deste princípio. Tento me manter aberto e acessível a qualquer outra realidade, que permaneça tão misteriosamente oculta a mim.
As dúvidas e perguntas não são eliminadas com isso. Elas permanecem e me mantêm vigilante. Elas me preservam da superficialidade e de respostas rápidas demais. Elas me levam ao fundo, à escuridão do não-saber. E às vezes elas somem nessa escuridão.
Na literatura mística encontramos sempre a advertência de uma busca rígida demais. Muitas vezes ela é acionada pelo ego, e o resultado é que, de tanto buscar, nunca se encontra nada. E talvez nem se trate de encontrar alguma coisa, mas muito mais se deixar encontrar, aqui e agora.
Quando perguntaram ao mestre zen japonês Eido Tai Shimano o que os budistas pensavam sobre a existência de Deus, ele respondeu:
– Há alguns dias eu caminhava ao longo do rio. De repente comecei a prestar atenção no sol que brilhava no meio dos galhos sem folhas das árvores. Seu calor, sua luminosidade – tudo gratuitamente, totalmente presenteado. Simplesmente para a nossa alegria. E sem que eu percebesse, bem espontaneamente, minhas mãos haviam se juntado, e eu me inclinei. Então ficou claro para mim que o importante era isso; podermos nos curvar, curvar-nos profundamente. Apenas isso. Simplesmente só isso.
fonte do texto:
MARTI, Lorenz. Como um místico amarra os seus sapatos: o segredo das coisas simples. Petrópolis: Vozes. 2008. p. 193-195.
Disponível em <https://www.estantevirtual.com.br/livros/lorenz-marti/como-um-mistico-amarra-os-seus-sapatos/2818474633>fonte da imagem:
CECCONI, Carlos Francisco. Entardecer. ago/2014.