UMA VISITA ESTRANHA

img capa do livro Como um Místico amarra os seus sapatos Um dia uma jovem mulher bateu na porta do mosteiro e pediu para ver Mestre Eckhart.

– A quem devo anunciar? – perguntou o porteiro

– Não sei.

– Como não sabe?

– Porque não sou uma menina, nem uma mulher, nem um homem, nem uma senhora, nem uma viúva, nem uma donzela, nem um senhor, nem uma criada, nem um criado.

O porteiro sacudiu a cabeça e foi à procura do Mestre Eckhart:

– Venha e veja a estranha visitante que quer falar com o senhor!

Eckhart correu até a porta e perguntou quem gostaria de falar com ele. E a mulher repetiu sua enigmática resposta.

Eckhart ficou pensativo e pediu-lhe explicações. A mulher respondeu que nenhum desses papéis condizia com ela.

– Não sou nenhuma dessas pessoas.

Mais tarde o mestre disse baixinho aos seus irmãos:

– Agora encontrei a pessoa mais sincera que já cruzou meu caminho.

Quem ouve essa história pela primeira vez sacudirá a cabeça, como fez o porteiro. O que significa isso? Por que a mulher não disse quem é? Por que todo esse mistério?

O ritual social transcorre de outro modo. Quem é solicitado a se apresentar diz primeiro o seu nome, depois a profissão, talvez a idade ou o lugar onde vive. Quando, num grupo ao redor de uma mesa, por exemplo, numa festa de aniversário, os convidados se apresentam, eles dizem o nome, a profissão e outras formalidades. Mas isso são apenas rótulos que rapidamente desbotam, caem, ou às vezes até são arrancados. O ser humano é mais do que alguém que tem funções, que representa esse ou aquele papel.

Não é por acaso que na lenda uma jovem mulher fala assim. Na linguagem simbólica a donzela é um ser humano livre de todos os vínculos externos. Ela não está “casada” com os papéis que assume, ou as funções que exerce. Ela é livre de todas as atribuições externas. Ela é ela mesma. Mas, quem é assim? “Eu não sei.”

De certo modo a jovem mulher preserva sua inocência, na medida em que não se identifica com nenhuma definição possível da sua pessoa; “de todas essas eu não sou nenhuma”. Tudo o que você achar que eu sou, eu não sou, e o que sou, nem eu sei.

Essa mulher também poderia ter dito, sem problemas, que é fulana, e faz isso e aquilo. Uma resposta assim é o que o porteiro esperava. Mas ela se nega a assumir essas atribuições superficiais, que talvez não tenham nada a ver com seu verdadeiro ser. Ela elimina todos os possíveis rótulos, até não restar mais nada para ela afirmar sobre si mesma. De certo modo ela está ali, despida. Mas isso não parece preocupá-la. Ela está livre.

Esse processo é semelhante àquele do escultor que retira do material tudo o que não pertence à imagem, para trazer à tona o verdadeiro, o essencial. Uma camada após a outra é retirada. Eu não sou o meu nome, não sou o tamanho do meu corpo, não sou minha profissão. Não sou minhas conquistas nem minhas deficiências. Não sou minhas forças nem minhas fraquezas. Não sou minha saúde nem minha doença. “De todas essas, não sou nenhuma.”

Tudo isso são coisas externas que passam, não têm solidez e não são realmente importantes para uma pessoa, mesmo que no momento possam sê-lo.

Com essa mulher desconhecida aprendo a prestar atenção no modo como costumo me definir. Frases como “eu sou isso e aquilo, ou sou assim e assado” são muito perigosas. Com isso eu engano os outros e também a mim mesmo.

Estabeleçco uma determinada imagem de mim mesmo, que coincide com a realidade da minha pessoa só condicionalmente. Pois eu não sou isso e aquilo, não sou assim e assado – sou bem diferente. Não, eu só sou, Isso é tudo.

O que resta no final? Um centro sagrado. Uma essência indivisível. Individuum est ineffabile, diz o franciscano e filósofo medieval Wilhelm von Ockham: “O indivíduo, a pessoa, é inefável.”

No seu interior cada pessoa é um mistério. Naturalmente são poucas as que sabem disso.

fonte do texto:
MARTI, Lorenz. Como um místico amarra os seus sapatos: o segredo das coisas simples. Petrópolis: Vozes. 2008. p. 78-80.
Disponível em <https://www.estantevirtual.com.br/livros/lorenz-marti/como-um-mistico-amarra-os-seus-sapatos/2818474633>