DIFERENTES MANIFESTAÇÕES DO NUMINOSO

Zodiacal Road - foto de estrada com céu de sol oente no horizonte - manifestação do numinosoQUAIS SÃO AS DIFERENTES MANIFESTAÇÕES DO NUMINOSO(*)?
Jean Yves-Leloup

São diversas as experiências de transparência e de dilaceramento. Imaginemos um quadro na parede. De repente, o quadro e a parede se tornam transparentes. Então, além dela, podemos ver a paisagem. Há, também, experiências intensas, nas quais o quadro, que pode ser a representação de nós mesmos, ao se dilacerar, nos abre a visão para a paisagem. Todos os tipos de dimensões que, até então, nós ignorávamos.

Há quatro principais locais de transparência, entre outros. A experiência do numinoso pode chegar a nós na natureza. Provavelmente, todos nós tivemos a oportunidade de conhecer essas manifestações em nossa infância e adolescência, ou mesmo recentemente. Não são simplesmente experiências estéticas, como um belo pôr-do-sol; são experiências, ao mesmo tempo, fascinantes e atemorizantes.

Por exemplo, caminhávamos em uma floresta e eis que paramos, de repente, e a interconexão, da qual falam os físicos, se torna para nós uma realidade. Descobrimos nossa fraternidade com a montanha, com os componentes do cosmos e a presença de todos os elementos que nos habitam. Pode ser impactante, porque perdemos os nossos limites e tudo aquilo que, até esse momento, tomávamos como nossa identidade.

Lembro de uma passagem, quando estava na Grécia, durante um tremor de terra. Poderia ter sido numa tempestade no mar, quando a presença da natureza nos invade totalmente e passamos a ser um elemento dela própria. Isso pode tomar formas fascinantes, maravilhosas, mas pode, em outras ocasiões, causar medo.

Penso em Francisco de Assis que, realmente, tinha uma experiência de Deus na natureza. O qu os físicos chamam de interconexão, interdependência entre todas as coisas, ele chama de fraternidade – irmão sol, irmã lua, irmãs águas, irmão vento. Sentia essas presenças em seu próprio sangue, compartilhando a seiva do mundo todo.

É também a experiência de Abraão numa noite estrelada, quando, repentinamente, além do buquê de estrelas, a Presença, que o faz ser e que faz ser todas as coisas, se manifesta para ele.

Para alguns, mais sensíveis à experiência da arte, o numinoso não se passa nos fenômenos cósmicos, da natureza. O contato com essa dimensão pode acontecer ao escutar certa música, ao ver um quadro ou uma cor. De repente, uma outra consciência se revela. No coração desta música há uma qualidade de silêncio desconhecida. Não temos que ser grandes artistas; ao improvisar no piano ou em outro instrumento, por exemplo, é possível sentir-nos atravessados por uma inspiração que vai além de nós mesmos.

Pode ocorrer na dança, quando não sou mais eu que danço; é a dança que dança em mim. Pode ser um momento de abertura à transcendência, um instante sagrado, nde não precisamos acreditar que existe outra dimensão, mas vivemos a presença dela em nós. Às vezes, isto pode nos causar medo, porque nos perguntamos: aonde esta emoção vai nos conduzir? Para onde seremos levados por essa inspiração?

A natureza, as obras de arte e há, também, o encontro humano. O encontro do homem e da mulher, que também pode ser o local de manifestação do sagrado. Momentos em que não há somente o acaso, simplesmente você e eu, com nossas afinidades. Há a presença do grande Terceiro. Entre nós, existe uma presença que, ao mesmo tempo, nos une e diferencia. No evangelho de Felipe, evocamos várias vezes essa experiência, como sendo um sinal da presença de Deus.

O sagrado pode se manifestar a nós na beleza da natureza, de uma obra de arte e também em uma relação, em todos os níveis. Dizemos, às vezes, que temos o diabo no corpo. Não podemos ter Deus na pele?

Jung, ao refletir sobre a sexualidade postulada por Freud, lastimava que este só a considerasse em seu aspecto orgânico e funcional, sem contemplar a sua dimensão sagrada. A abertura à transcendência, que pode acontecer nesse nível.

Entretanto, a sexualidade não pode ser encarada sempre como uma experiência divina. Pode ser algo muito banal, ou até mesmo um momento de destruição ou dissolução, se o amor não estiver presente, se não existir um coração em todas partes de nosso corpo. Agora, se o amor estiver presente, a experiência do sagrado poderá ocorrer.

O encontro pode ser, também, de dois espíritos. Geralmente acontece entre mestre e discípulo, quando alguém fala e o que expressa é o que penso, como se fosse minha voz interior se exprimindo no exterior, em momentos de profunda unidade que dão testemunho de uma dimensão sagrada. O numinoso pode se manifestar neste encontro; ficamos fascinados e ao mesmo tempo isso nos causa medo. Quem é essa pessoa, que diz exatamente o que eu penso, que coloca palavras naquilo que eu não ousava dizer nem a mim mesmo? Será que está em mim ou no exterior? A que eu estou sendo chamado, a que estou sendo convidado, nesse encontro? Talvez isso questione a maneira habitual de viver e traga um convite para o despertar de uma nova consciência.

Também a liturgia pode ser uma ocasião para a viência do numinoso. O que nos parece mais natural, por ser sua função exatamente buscar-nos no estado de consciência habitual, para nos fazer passar a outras frequências.

Há a função de um canto sagrado, que não é simplesmente religioso, que permanece fechado no campo psíquico. Este que pode nos emocionar, nos tocar, mas não nos faz passar a uma outra consciência. Em nossas igrejas vivemos, com frequência, no nível psicológico e emocional. Assim, nem sempre o ritual nos conduz a essa dimensão ontológica do Ser.

Há também o encontro com situações inaceitáveis. Porque o numinoso não se manifesta somente por meio de experiências agradáveis; pode acontecer no coração do sofrimento. Você lembra momentos em sua vida em que havia tanta dor, que você já não sentia mais nada? É tão doloroso que, de repente, a própria dor nos faz passar a uma outra dimensão. Isso é bastante surpreendente; é como se, no coração do sofrimento, houvesse um local de nós mesmos que não sofre.

Lembro de uma noite em que estava num hospital. Em torno de uma hora da madrugada, houve um momento de silêncio, onde os gemidos, que, até então não calavam, cessaram. Perguntei-me: para onde foi a dor? Ela estava ali, mas era como se a consciência do sofrimento não estivesse mais presente. É o mistério do sono, que encontramos ao dormir profundamente.

Nestes momentos, onde está nossa dor física ou psíquica? É como se houvesse um lugar em nós que estivesse além do sofrimento. Penso no testemunho do médico de Ramana Mahashi, que morreu com um câncer muito doloroso. Ele disse: Eu não compreendo; pelos sintomas, o corpo desse homem deveria estar retorcido de dor e, quando olho para seus olhos, vejo apenas a tranquilidade. Como é possível? E o mestre dizia: Meu corpo sofre, mas não sou somente matéria. Sou também esse espaço de silêncio, de plenitude e de paz, no coração do próprio sofrimento.

Há o sofrimento psíquico, também inaceitável. Penso numa obra que fala da experiência de Zorba, o Grego, que construiu, com seu amigo, uma mina. Nela colocou todo o seu dinheiro e o trabalho de muitos anos. No dia da inauguração, da realização de sua obra e de seu trabalho, de repente, tudo desaba. É completamente absurdo e isso pode acontecer conosco: fizemos nosso possível, para que as coisas fossem bem, demos o nosso melhor e, no momento que conseguimos chegar ao objetivo, tudo desmorona.

No filme: Anthony Queen encarnava o personagem de Zorba. Percebe-se em seus semblante que, diante de tal absurdo, ele poderia ficar louco ou bater a cabeça contra uma parede. Então, após um momento de hesitação, ele começa a dançar e estranhamente exclama: Que maravilhosa catástrofe!

Não devemos nos apressar em dizer algo semelhante, sobretudo a alguém que está vivendo uma experiência desse tipo. Mas, às vezes, é necessário nos lembrarmos disso. É tão absurdo, que tocamos outro nível de consciência. Não há explicação. Há simplesmente um riso, ou um sorriso interior que relativiza tudo que nos acontece. No cerne da aceitação do desespero, entramos num sentido superior, que transcende todas as explicações.

Enquanto dissermos não ao sofrimento ele só poderá aumentar. Ao aceitá-lo, poderemos transformá-lo.

Lembro das palavras do escritor inglês Gilbert Keith Chesterton: louco é alguém que perdeu tudo, exceto a razão. Enquanto quisermos ter razão, em certas situações em que isso não é possível, podemos nos tornar loucos. Quando aceitamos que não estamos compreendendo, que o racional não explica tudo, podemos passar a uma inteligência superior.

O mesmo acontece com a solidão. Enquanto fugimos dela, ela nos alcança em um ou outro momento. Quando dizemos sim ao estar só, quer seja num quarto de hospital ou em outras situações, nos descobrimos em comunhão com seres que pensávamos que tivessem nos esquecido. Estamos sós e, ao mesmo tempo, ligados a tudo o que existe. A comunhão com todos os seres, no cerne da solidão, é uma experiência numinosa.

Finalmente há a experiência da morte, que todos faremos. Enquanto tentarmos fugir dela, ela nos aterrorizará. Quando o momento chegar, o fato de saber dizer sim é o que faz passar a uma outra dimensão.

Afirmo isso, recordando a experiência que tive em Istambul quando, logo após um envenenamento, quiseram me sepultar. Fui declarado clinicamente morto e preparavam-se para me enterrar. Eu tinha 19 anos e lembro que, enquanto eu dizia não – porque eu pensava ser jovem demais para morrer -, o sofrimento e o medo só aumentavam. No momento em que aceitei o inaceitável, aconteceu, em mim, a abertura. Então, houve uma passagem para além da consciência. Foi como se um pássaro saísse de sua gaiola, e o voo saísse do pássaro, para juntar-se ao espaço.

São imagens, através das quais tento traduzir o que foi essa experiência de coma profundo, de um entrar em uma outra dimensão do Ser.

Quando um médico viu um movimento em meu dedo, percebeu que eu não estava morto. Eles, então, tentaram me reanimar. Era como se o espaço retornasse ao voo que voltasse ao pássaro, e este à sua gaiola. Desde então, sinto-me um pouco estreito em meu corpo, mas é a forma humana na qual eu devo, ainda, viver.

Nessa época eu não tinha fé e esse foi o início de uma experiência espiritual. Quando o Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Atenágoras, me mostrou um ícone de Cristo, com a expressão Eu Sou, esse Eu Sou do qual Jesus fala nos Evangelhos: Antes que Abraão fosse, Eu Sou (Jo 8, 58). Percebi, então, que não eram apenas palavras; realmente, era uma experiência. O que eu tinha acabado de viver era a presença do Eu Sou, que está não só em mim, mas em todos os seres.

Ali onte está o Eu Sou, quero que vocês também estejam.

Talvez seja a função do Terapeuta facilitar que todas as pessoas, que viveram experiências numinosas, compreendam que elas são diferentes para cada um.

Há experiências que não evocamos aqui e que podem ocorrer diante da beleza de uma criança que dorme – só os santos sabem rezar como uma criança sabe dormir -, que pode nos despertar para essa outra dimensão. É fundamental considerar essas vivências; não negá-las, não recalcá-las e não se apegar, tentando repeti-las. Acolhê-las, como uma manifestação do Ser no humano, como uma revelação do Eu Sou, que está em nós.

Se a função do Terapeuta é possibilitar a alguém reencontrar o seu eixo e, a partir daí, viver com esse centro, ele é, realmente, o guardião do Ser. O Terapeuta cuida do Ser, lembrando à pessoa que sofre, ou que vive uma experiência crítica, esta presença do Eu Sou. Do Eu Sou que vai bem.

É na sua Presença que somos convidados a nos colocar a caminho.

fonte do texto:
LELOUP, Jean-Yves. Uma arte de cuidar: estilo alexandrino. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p.99-106

fontes das imagens:
NASA; ESA; Hubble Heritage Team. M82: Galaxy with a Supergalactic Wind. Disponível em https://apod.nasa.gov/apod/ap190723.html. Acesso em jul 2019.
MERZLYAKOV, Ruslan. Zodiacal Road. Disponível em https://apod.nasa.gov/apod/ap190724.html. Acesso em ago 2019.

(*) nu·mi·no·so |ô|
(latim numen, -inis, anuência com a cabeça, poder divino + -oso)
adjetivo
Relativo a nume ou a divindade.