UMA ESCOLA DO OLHAR

img de jesus e samaritana. autor desconhecidoEis a importância da prática da transdisciplinaridade. Saber que há diferentes pontos de vista sobre uma mesma realidade. E que precisamos de todos eles, para ver melhor.

Os Antigos Terapeutas buscavam despertar, em si, o que chamamos o olho do Querubim. O Querubim, na tradição antiga, é um estado de visão, representado como asas repletas de olhos. Essa imagem é encontrada em diversas culturas, particularmente na tradição da Etiópia, onde há Querubins nos tetos das igrejas: olhos que nos olham.

Certa vez, quando adoeci na Etiópia, fiquei surpreso ao ver um médico me dar um pequeno rolinho e dizer Eis seu remédio. Ao desenrolar, vi que havia nele asas com olhos. Tocou-me profundamente, porque compreendi que se trata de colocar um outro olhar sobre a doença.

Há a visão do médico, do psicólogo, dos amigos, mas há também o olhar do Anjo. Esse olhar que vê o que acontece segundo um outro ponto de vista, de outra profundidade e que contempla a nossa doença ou sintomas não somente como os olhos humanos são capazes. Então pode se abrir, talvez, uma outra interpretação sobre aquilo que nos ocorre.

Assim, convido vocês a imaginarem um olho, com facetas, como o de uma abelha. Como ele nos veria neste momento? Não tem nada a ver com a nossa maneira habitual de olhar. Ou um cavalo – você já pensou em mirar alguém com o olhar de um cavalo? Aparecemos com uma forma completamente diferente. Trago essas imagens para nos lembrar que a visão de mundo que temos é ligada ao nosso instrumento de percepção e no olho de um cavalo ou de uma abelha há todo um outro mundo. A maneira de ver alguém pode mudar, segundo a qualidade de nosso olhar.

Então, a tarefa é despertar em nós essas diferentes facetas. Isso me faz pensar nas diferentes áreas do cérebro, nas diferentes capacidades de apreender o mundo.

Vou propor o olhar dos Antigos Terapeutas que possui sete olhos. Geralmente paramos no terceiro olho.

O primeiro olhar é o do ver – eu vejo.

O segundo é o ohar da ciência – eu observo, eu analiso. É um olhar apoiado, aprofundado.

O terceiro olhar é o que pergunta – eu interrogo. O que é esse sintoma? O que ele manifesta? O quê? O que é?

O quarto olhar é o que se pergunta – eu me interrogo. Como é que eu vejo? É o olho da filosofia metafísica. O que é o Ser? O que é o ser humano? Trata-se de como eu conheço. Esta é a filosofia de Kant, por exemplo, que se interroga sobre como a ciência é possível. Eu conheço muitas coisas, mas não apreendo o instrumento através do qual eu conheço as coisas. Para um Terapeuta há uma questão muito importante: qual é o instrumento por meio do qual ele conhece o outro e interpreta sua doença? É necessário purificar este instrumento e ver que, segundo o modo de percepção que adotamos, a realidade dos sintomas pode ser completamente diferente. Não somente interrogo o real, este corpo que acompanho, mas também sobre minha maneira de conhecê-lo.

O quinto olhar se abre para o sentido – eu acolho o sentido. Por intermédio dos sintomas, dos sonhos, da fala, simplesmnte acolho o sentido, antes de interpretá-lo.

O sexto olhar é o da interpretação – eu interpreto. Essa interpretação pode ser criadora. Após o exercício de todos esses olhos de observação, da análise, da interrogação, da escuta acolhedora, me torno capaz de interpretar e dar um sentido ao que a pessoa está vivendo.

O sétimo olhar é que direciona e liberta – vá com sentido! Da mesma maneira que dizemos: Vá com Deus! poderíamos dizer: Vá com sentido! Vá com a interpretação da sua doença, não apenas na sua dimensão mental; também com os meios de curá-lo, de cuidar de você. Essa é a grande palavra dos Terapeutas: Vá em direção a você mesmo, eu estou com você! Esta foi a Palavra dirigida por Deus a Abraão. (1)

Este olhar amoroso, iluminador, o Terapeuta não pode adquiri-lo a não ser por uma contemplação (theoria) assídua da luz que está “acima do sol sensível”. Sem dúvida, deve-se ter sempre o coração exposto a essa luz do Ser, para contemplar todas as coisas com olhos claros. Uma pessoa se torna o que ama, torna-se o que olha. O Terapeuta pode vir a ser claridade para aqueles que têm a coragem de depositar diante dele os fragmentos noturnos da sua vida. Ele é então a testemunha humilde e solar da Estrela que os trouxe atá aqui. Por muito tempo ainda depois de tê-lo deixado, o tempo se torna menos pesado. A pessoa fica então como que “ensolarada”. (2)

fonte do texto:
(1)
LELOUP, Jean-Yves. Uma arte de cuidar: estilo alexandrino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p.66-68.

(2)
LELOUP, Jean-Yves. Cuidar do ser: Filon e os terapeutas de Alexandria. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p.113.

fonte da imagem:
PASTRO, Cláudio. A Samaritana.