AVALOKITESHVARA E KWAN YIN

Um dos mais poderosos e amados Bodisatvas do budismo Mahaiana do Tibete, da China e do Japão é o portador do Lótus, Avalokiteshavara, “o Senhor que olha para Baixo com Piedade”, assim chamado porque olha com compaixão para todas as criaturas sensíveis que sofrem os males da existência. Para ele é dirigida a oração milhões de vezes repetida das rodas de oração e dos gongos dos templos do Tibete: Om Mani Padme Hum, “a joia está no lótus”. Pra ele talvez sejam dirigidas mais orações por minuto do que qualquer divindade conhecida pelo homem; pois quando, em sua última vida na terra como ser humano, ele abalou por si mesmo o último limiar (momento no qual a ele se abriu a intemporalidade do vazio, que se acha além dos enigmas-miragens do cosmo nomeado e limitado) e deu uma pausa, fez o voto de que, antes de penetrar no vazio, levaria todas as criaturas, sem exceção, à iluminação; e desde então tem permeado toda a textura da existência com a graça divina de sua presença auxiliadora, de modo que a mais insignificante oração que lhe for dirigida, em todo o vasto império do Buda, é graciosamente ouvida. Sob formas diferentes, ele atravessa os dez mil mundos e aparece na hora da necessidade e da oração. Ele se revela, sob forma humana, com dois braços e, sob formas supra-humanas, com quatro, seis, doze ou mil, trazendo, numa de suas mãos esquerdas, o lótus do mundo.

Tal como o próprio Buda, esse ser divino é um padrão da condição divina que o herói humano atinge quando ultrapassa os últimos terrores da ignorância. “Quando o envoltório da consciência tiver sido aniquilado, ele se torna livre de todo temor, além do alcance da mudança”. Eis o potencial libertador que se encontra dentro de todos nós, e que todos podem alcançar – através do heroísmo; pois, como lemos: “Todas as coisas são coisas do Buda”; ou ainda (e essa é outra maneira de fazer a mesma afirmação): “Todos os seres são desprovidos do eu”.

O mundo é feito e iluminado pelo Bodisatva (aquele cujo ser é iluminação), mas não o retém; pelo contrário, é ele quem retém o mundo, o lótus. A dor e o prazer não o encerram; ele os encerra – e numa profunda tranquilidade. E como ele é aquilo que todos podem ser, sua presença, imagem, o simples proferir do seu nome, ajudam. “Ele veste uma grinalda de oito mil raios, na qual é visto, plenamente refletido, em estado de perfeita beleza. A cor de seu corpo é púrpura-ouro. As palmas das mãos tem a cor mista de quinhentos lótus, ao passo que cada ponta de dedo traz oitenta e quatro mil marcas de sinete e cada marca oitenta e quatro mil cores; cada cor tem oitenta e quatro mil raios suaves e meigos que brilham sobre tudo o que existe. Com essas mãos de joia ele atrai e abraça todos os seres. O halo que lhe cerca a cabeça contém quinhentos Budas, miraculosamente transformados, cada um deles assistido por quinhentos Bodisatvas, assistidos, por sua vez, por um sem-número de deuses. E quando ele põe os pés no solo, as flores de diamantes e joias, que se acham espalhadas, cobrem todas as coisas em todas as direções. A cor de sua face é dourada. Enquanto, em sua imponente coroa de gemas, há um Buda de quatrocentos quilômetros de altura.

Na China e no Japão, esse sublimemente amoroso Bodisatva é representado tanto sob a forma masculina, como sob forma feminina. Kwan Yin, na China; Kwannon, no Japão – a Madona do Extremo Oriente – eis precisamente essa observadora benevolente do mundo. Ela é encontrada em todo templo budista da parte mais remota do Extremo Oriente. Ela é abençoada, da mesma forma, para o simplórios e para o sábio; pois, implícita em seu voto, reside uma profunda intuição, redentora do mundo, sustentáculo do mundo. A pausa no limiar do Nirvana, a resolução de adiar até o fim do tempo (que nunca tem fim) a imersão no poço imperturbável da eternidade, representa uma percepção de que a distinção entre a eternidade e o tempo não passa de aparência – tendo sido elaborada, à força, pela mente racional, mas dissolvida pelo conhecimento perfeito da mente que transcendeu os pares de opostos. Esse conhecimento reconhece que o tempo e a eternidade configuram-se como dois aspectos da mesma experiência total, dois planos do mesmo inefável não-dual; isto é, a joia da eternidade está no lótus do nascimento e da morte: Om Mani Padme Hum.

O primeiro prodígio a ser percebido aqui é o caráter andrógino do Bodisatva: o Avalokiteshavara masculino e a Kwan Yin feminina. Os deuses macho e fêmea não são incomuns no universo do mito. Eles sempre se encontram imersos num certo mistério; pois conduzem a mente para além da experiência objetiva, para um domínio simbólico que deixa para trás a dualidade.

fonte do texto:
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento. 2007. p.144-146.

fonte das imagens:
SHEPHARD, Stephen. A thangka (religious painting), School of Traditional Arts, Thimphu.jpg. Disponível em [https://commons.wikimedia.org/wiki/File:A_thangka_(religious_painting),_School_of_Traditional_Arts,_Thimphu.jpg]
BRUSH, Joe [Phaedris]. Kwan Yin Guanyin II. Disponível em [https://phaedris.deviantart.com/art/Kwan-Yin-Guanyin-II-252657405].